
Em cerca de duas horas de interrogatório na tarde desta terça-feira (10), o ex-presidente da República Jair Bolsonaro admitiu que discutiu medidas que pudessem reverter o resultado da eleição de 2022, na qual ele foi derrotado, mas negou que tenha havido qualquer intenção de golpe de Estado ou intervenção militar.
Além disso, Bolsonaro reiterou desconfiança pessoal a respeito das urnas eletrônicas, mas atribuiu a disseminação de informações não comprovadas e atritos com a Justiça aos seus "temperamento" e "retórica".
— Se eu exagerei na retórica, devo ter exagerado com toda a certeza, mas a minha intenção, o meu objetivo sempre foi mais uma camada de proteção por ocasião das eleições, de modo que evitasse qualquer conflito, qualquer suspeição — argumentou.
Jair Bolsonaro é acusado pela Procuradoria-Geral da República (PGR) de liderar um grupo que teria tramado a ruptura com a normalidade democrática a fim de evitar a confirmação do resultado das eleições presidenciais de 2022.
Ele e outros sete réus na ação foram interrogados na Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF). Antes do ex-presidente, falaram o ex-ajudante de ordens da Presidência Mauro Cid, o ex-chefe da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) Alexandre Ramagem, o ex-comandante da Marinha almirante Almir Garnier, o ex-ministro da Justiça Anderson Torres e o ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) general Augusto Heleno.
Também nesta terça foram ouvidos o ex-ministro da Defesa Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira e o ex-ministro da Casa Civil Walter Braga Netto.
Confira abaixo os principais tópicos do depoimento de Jair Bolsonaro
Discussões sobre reversão da eleição
Durante o interrogatório desta terça-feira, o ex-presidente Jair Bolsonaro admitiu que manteve reuniões com os comandantes das Forças Armadas após a eleição de 2022 e que houve, nestes encontros, discussão de medidas que pudessem reverter o resultado do pleito:
— Nós estudamos possibilidades outras dentro da Constituição. Ou seja, jamais saindo das quatro linhas, como o próprio comandante Paulo Sérgio falou, que tinha que ter muito cuidado nas questões jurídicas, porque não podíamos fazer nada fora disso. Obviamente, a gente sabia disso. Em poucas reuniões, abandonamos qualquer possibilidade de uma ação constitucional. Abandonamos e enfrentamos o ocaso do nosso governo.
Bolsonaro disse que estes debates aconteceram a partir de uma multa aplicada pelo TSE ao PL, partido dele. A sigla moveu ação tentando anular votos do segundo turno da eleição de 2022, alegando problemas com as urnas, mas acabou condenada por litigância de má-fé:
— Como nós fomos impedidos de recorrer ao TSE com preocupação de uma penalidade mais alta do que a ocorrida, nós buscamos alguma alternativa na Constituição e achamos que não procedia e foi encerrado.
O ex-presidente admitiu que houve discussão sobre eventual decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), mas que seria com objetivo de evitar bloqueios de rodovias por caminhoneiros ou sobre algum descontrole dos manifestantes em frente aos quartéis, que protestavam contra o resultado do pleito.

Jair Bolsonaro também foi questionado sobre a informação de que o general Freire Gomes, então comandante do Exército, teria dito que tomaria providências caso fossem levadas adiante possíveis medidas de exceção:
— Não é nem tomar providência, no meu entender, é internar quem tivesse uma intenção dessa natureza (um golpe de Estado). Nas Forças Armadas, missão legal dada é missão cumprida. Missão ilegal não é cumprida. Em nenhum momento, como vi depois nos autos, alguém me ameaçou de prisão se prosseguisse naquela missão.
Bolsonaro reforçou que não houve debate sobre golpe:
— Só tenho uma coisa a afirmar a Vossa Excelência, da minha parte, da parte de comandantes militares, nunca se falou em golpe. Golpe é uma coisa abominável. O golpe até seria fácil começar. O after day que é simplesmente imprevisível e danoso para todo mundo. O Brasil não poderia passar por uma experiência dessa. E não foi sequer cogitado essa hipótese de golpe no meu governo.
Minuta golpista
Na segunda-feira, o ex-ajudante de ordens Mauro Cid afirmou, em seu depoimento, que Bolsonaro leu e editou o documento conhecido como "minuta do golpe", o rascunho de um decreto que seria assinado pelo presidente, prevendo, entre outras coisas, estado de sítio e a criação de uma comissão para refazer a eleição.
O ex-presidente admitiu que soube da existência deste texto, mas que nunca teve acesso à íntegra dele, nem lhe deu importância:
— Isso foi colocado numa tela de televisão e mostrado de forma rápida ali. Mas a discussão sobre esse assunto já começou sem força, de modo que nada foi à frente.
Sobre a informação de que ele editou o texto, retirando as previsões de prisões de autoridades, Bolsonaro respondeu:
— Não procede o enxugamento.
E acrescentou:
— As conversas eram bastante informais, não era algo proposto aqui, vamos decidir, nada disso aconteceu, era conversa informal, ver se existia alguma hipótese de um dispositivo condicional para nós atingirmos aqui um objetivo que não tínhamos atingido no TSE. Isso foi descartado logo na primeira e segunda reunião.
"Críticas" às urnas
Questionado repetidamente sobre manifestações em que buscou descredibilizar as urnas eletrônicas, Bolsonaro rechaçou o uso do termo "ataque", dizendo que fez apenas "críticas" ao que via como vulnerabilidades do sistema.
Um dos fatos citados pela investigação e abordado no depoimento desta terça é uma reunião ministerial realizada em 5 de julho de 2022 na qual o então presidente afirmou que sabia de fraudes na eleição, que dariam a vitória ao então candidato pelo Partido dos Trabalhadores (PT), Luiz Inácio Lula da Silva. No interrogatório, Bolsonaro disse que este encontro foi "grampeado":
— Essa reunião não era para ter sido gravada, era algo reservado. Alguém gravou, no meu entender, de má-fé, e ela tornou-se pública. Se não, eu não estaria explicando esta questão aqui agora. Esta foi a minha retórica, que usei muito enquanto deputado e depois como presidente também, buscando o voto impresso como uma forma a mais, mais uma barreira para evitar qualquer possibilidade de se alterar o resultado das eleições.

Na mesma reunião, o então presidente sugeriu que sabia sobre os ministros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Edson Fachin, Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes estarem recebendo "milhões de dólares". Questionado a respeito nesta terça, ele admitiu que não tinha esta informação:
— Não tem indício nenhum, seu ministro, tanto é que era uma reunião para não ser gravada, um desabafo, uma retórica que eu usei. Se fossem outros três ocupando (as cadeiras do TSE), teria falado a mesma coisa. Então, me desculpem, não tinha essa intenção de acusar de qualquer desvio de conduta dos senhores três.
O ex-presidente afirmou, ainda, que seus exageros na retórica, como afirmar que sabia de fraude sem provas disso, são um "vício" que trouxe da carreira legislativa.
— Acredito, com todo respeito, pela imunidade parlamentar, pelo fato de o parlamentar ele poder usar das palavras, voto, à vontade, talvez esse vício eu tenha trazido para o Poder Executivo.
Operação da PRF no segundo turno
O ministro do STF Alexandre de Moraes, que é relator da ação sobre a trama golpista na Primeira Turma, questionou se Jair Bolsonaro sabia das operações da Polícia Rodoviária Federal (PRF) no dia do segundo turno das eleições, com abordagens a ônibus em que estavam eleitores.
— O que eu fiquei sabendo sobre isso, após o ocorrido, é que nenhum eleitor deixou de votar nessas regiões, é o que eu fiquei sabendo depois — respondeu o ex-presidente.
Convite para vice
O tenso encontro entre Jair Bolsonaro e o ministro Alexandre de Moraes (frequentemente alvo de críticas públicas do ex-presidente e de aliados dele) teve também momento de descontração.
A certa altura, Bolsonaro perguntou se podia fazer uma brincadeira.
— Eu gostaria de de convidá-lo para ser meu vice em 2026 — disse, rindo e arrancando risadas dos presentes.
— Eu declino — respondeu Moraes, prontamente, com um sorriso.
Veja o vídeo abaixo:
"Isso não é golpe"
A denúncia da PGR aponta os atos de 8 de janeiro de 2023, quando manifestantes invadiram e depredaram as sedes dos três poderes em Brasília, como parte de uma trama que envolveria a abolição violenta do Estado democrático de direito e um golpe de Estado (crimes pelos quais Bolsonaro é réu).
No depoimento desta terça-feira, o ex-presidente disse que não houve essa relação, e comparou o movimento ao golpe militar de 1964, que deu início a um período ditatorial de cerca de 20 anos no Brasil:
— Muitos chamam o Temer de golpista até hoje pelo impeachment. A questão de 64, que a esquerda chama de golpe até hoje, teve o apoio do Congresso Nacional, de toda a imprensa, exceto o jornal Última Hora, da Igreja Católica, das senhoras nas ruas, com a marcha da família, a classe empresarial, o pessoal do agro, o apoio externo, tudo isso foi presente. Falar em golpe de Estado, dessa forma como se tratou aqui, o que aconteceu, em especial depois do meu governo, quando eu estava fora do Brasil, sem qualquer participação minha, sem qualquer liderança, sem Forças Armadas, sem armas, sem um núcleo financeiro sem nada, isso não é golpe. Isso não é golpe.

"É um inferno aquela vida"
Jair Bolsonaro usou vários momentos do depoimento para enaltecer o seu mandato na Presidência da República, mas afirmou que não esperava ser eleito:
— Vou te confessar uma coisa, Vossa Excelência, quando me elegi presidente da República eu ajoelhei e falei: "Meu Deus, qual pecado eu cometi para pagar o preço de uma Presidência?" Coisas que aconteciam ali no começo do mandato, já, gente poderosa, não do seu poder, do Legislativo, praticamente botar o dedo na cara e falar "eu quero tal ministério, eu quero tal diretoria de tal banco". Você não governa. É um inferno aquela vida.
"Não gostaria de ser condenado"
— Obviamente, não gostaria de ser condenado. Até porque eu entendo que nada que estou sendo acusado procede. Eu quero ajudar o meu país e conto com vocês dois aqui (Moraes e Fux), um procurador muito importante também, e eu peço a Deus que ilumine todos os senhores, por ocasião da feitura do voto, do parecer, para o bem do nosso país — pediu Bolsonaro, durante o interrogatório.