
A fé, a linguagem, a gastronomia, a musicalidade, as formas de diversão. A lista de heranças deixada pelos imigrantes italianos e preservada pelos descentes é extensa. Aspectos especialmente culturais que enriqueceram os municípios da Serra e ainda hoje são capazes de surpreender os italianos chegam à região — mesmo 150 anos depois dos compatriotas terem atravessado o Atlântico, em busca de uma vida mais próspera.
O modelo de ensino italiano e os estereótipos do povo brasileiro podem ajudar a explicar a surpresa experenciada por parte dos italianos que desembarca ou descobre as tradições mantidas na Serra gaúcha, segundo a socióloga e doutora em história Vania Herédia.
— Os italianos, numa cultura geral, não estudam muito o Brasil. Na escola, eles têm uma cultura muito voltada para a história deles, da Europa. Então, quando viajam, ficam admirados com o que eles encontram aqui, porque escapa daquela ideia do que eles tinham sobre o Brasil. O nosso país, para eles, é muito conhecido por aquilo que passa na televisão, que passa em filmes, normalmente ficando centrado na questão do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais — explica Vania, que viveu por muitos anos no país europeu.
A sensação de encontrar a extensão de casa do outro lado do oceano soma-se à admiração: primeiramente, pela preservação de hábitos dos antepassados e, em segundo momento, pela construção de uma identidade própria e uma economia rica em solo gaúcho.
— Quando visitam a Serra, ficam surpresos que os imigrantes preservaram aspectos culturais que eles mesmos não conseguiram preservar, especialmente depois da fase do fascismo — aponta Vania, que completa:
— Recebi professores italianos por muitos anos e existe uma admiração com a tenacidade do próprio imigrante de ter conseguido se adaptar às condições que o país tinha e não querer fazer igual ao que era. E, consequentemente, esse sincretismo que nasce dessas relações faz com exista uma cultura mais dinâmica, mais aberta, que eles não têm. Também há um reconhecimento de que é uma região que, em 150 anos, soube aproveitar as condições que foram oferecidas, a nível de infraestrutura, de estradas, pontes, fábricas — detalha.
"Estamos em casa", diz professora italiana que mora há 12 anos na Serra

Diferentemente dos conterrâneos do Século 19, foi uma história de amor que trouxe a professora italiana Elena Gallorini, 37 anos, para a Farroupilha, em 2013. Ela e o marido, o engenheiro civil Ramadan Elias Paludo, 38, se conheceram durante um intercâmbio, quatro anos antes, na França.
A existência de um grupo de brasileiros com cidadania italiana foi motivo de graça e até desconfiança nos corredores da aula de francês. O motivo? Elena nunca tinha ouvido falar sobre a imigração italiana para o Brasil, tampouco imaginava que os costumes da própria pátria eram mantidos com tanto empenho a milhares de quilômetros de distância.
— Foi muito engraçado, porque muitos brasileiros estavam na turma de uma amiga minha italiana. Ela veio e me disse "olha, conheci amigos brasileiros e todo mundo tem cidadania italiana". E eu pensei "não, como assim? Isso não é possível". Não fazia ideia da história da imigração italiana para o Rio Grande do Sul. Porque lá, em linhas gerais, pensamos mais na imigração para os Estados Unidos. Claro que isso aconteceu em 2009. Talvez hoje tenha muito mais ligação. Existem as redes sociais, os brasileiros que vão para lá em busca da cidadania — diz a professora.

A primeira viagem para a Serra foi em 2010. Elena, então, viu "que era tudo verdade", como menciona:
— Eu me senti muito bem-vinda aqui. Estamos em casa! É muito forte essa preservação que se faz e acho que deve continuar. Além disso, existe um amor por essa história. As pessoas gostam de contar a história da família. As pessoas vão conhecer a aldeia de onde veio o sobrenome deles, mesmo que hoje já não exista nada.

A vivência na Serra acabou aproximando a italiana do próprio país. Aqui, ela conheceu de perto uma gôndola veneziana — embarcação usada para passeios e doada pelo governo italiano para Farroupilha —além de novas formas de se comunicar no idioma Talian.
— Eu nunca fui para a Veneza, a única gôndola que vi foi em Nova Milano. Tem até uma foto lá em casa, virou lenda — recorda-se, brincando.
Atualmente, Elena dá aulas de italiano e francês em Farroupilha. Os pais, uma irmã e os avós permanecem no país europeu e são visitados anualmente.
O olhar de quem entende

Embora não seja italiano de nascimento, os laços familiares e as relações afetivas e profissionais construídas com o país europeu permitem que o caxiense Lissandro Stallivieri tenha um olhar sensível e claro sobre a imagem da Serra gaúcha para os italianos da atualidade.
Neto de um imigrante que desembarcou mais tardiamente no Brasil, nos anos 1920, Lissandro recorda-se que cresceu vendo o avô receber cartas dos parentes que permaneceram na terra natal. Mais tarde, na adolescência, as viagens familiares tornaram-se comuns, permitindo um contato ainda maior com os primos e com a cultura dos antepassados.
— Eu tenho um pouco dessa questão de ter uma relação mais contemporânea, que é uma coisa diferente da maioria das pessoas. Porque o que se tem, geralmente, são as histórias de um familiar já falecido, com quem nunca se teve contato. E eu não, eu cresci com isso e a gente mantém essa relação até hoje. Minha irmã, inclusive, mora na Itália, casou com um italiano — conta Stallivieri.
Jornalista e diretor cinematográfico, Stallivieri também construiu relações profissionais com o país europeu. Com um produtor parceiro estabelecido na Itália, o caxiense iniciou produções audiovisuais do outro lado do oceano. O trabalho mais recente, o documentário Seival, teve cenas gravadas em solo italiano em 2023. Ainda sem data oficial de lançamento, o material aborda a história da embarcação usada por Giuseppe Garibaldi durante a Revolução Farroupilha para a tomada de Laguna (SC).

Para ele, a busca dos brasileiros pela cidadania italiana colaborou para difundir, nos últimos anos, a história da imigração para a América do Sul. Um cenário diferente de pouco tempo atrás:
— Era uma grande surpresa para eles encontrarem brasileiros que falavam em italiano antigo, que sabiam cantar as músicas, que conheciam sobre vinhos, sobre a gastronomia de origem italiana. Acho que não só na Itália, há uma imagem de um brasileiro que não tem nada a ver com as raízes europeias.
A sensação, para o jornalista, é de que os descentes estabelecidos no Brasil reconhecem muito mais a história de quem deixou a Itália do que boa parte dos próprios italianos.
— Impressiona descobrirmos que são poucos italianos que conhecem a sua história em relação às migrações — comenta Stallivieri.