Tão importante quanto a celebração de uma história é a preservação dela. Em Caxias do Sul, museus e o Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami guardam os recortes da memória dos 150 anos da Imigração Italiana na Serra. São objetos, relatos, obras e até a reconstituição de ambientes que levam os visitantes a uma viagem no tempo para as primeiros anos e décadas dos imigrantes na cidade e na região. Para os moradores ou turistas, pode ser a experiência de conhecer novos traços da origem de uma comunidade.
Entre os acervos, fica evidente marcas como a cultura do trabalho pela qual a região sempre foi conhecida, a religiosidade e os desafios dos imigrantes pela sobrevivência. No Museu Municipal de Caxias do Sul, entre os inúmeros e raros itens de época, estão, por exemplo, as mais diversas ferramentas que eram usadas no campo. Já a Casa de Pedra é a história, em meio ao caos urbano, de como as famílias viviam.
A obra que pode simbolizar o início dessa história, inclusive, está exposta logo na entrada do acervo do Museu Municipal. Trata-se do painel Alegoria Primeira ao Imigrante, de Tarquinio Zambelli, encomendada pela então Intendência Municipal por volta de 1890. O diretor da Divisão de Museus da Secretaria Municipal da Cultura (SMC), Itamar Comarú, chama atenção ao simbolismo da peça:
— A ideia dela simboliza aquilo que está sendo comemorado, que foi comemorado em 1975, no centenário, e que está sendo comemorado agora. Essa valorização ao trabalho, essa valorização a essa cultura imigrante, que não é só italiana. Temos os mais diversos grupos na cidade e de certo modo, isso também está representado nessa obra, embora seja ela mais vinculada à italianidade. Temos uma pátria, que representa, então, esse país próspero e essa pujança. Temos a perspectiva do imigrante, dessa criança, que chega nessa construção social.

O painel é apenas uma das importantes histórias dos 150 anos da Imigração que podem ser encontradas nos museus e no Arquivo Histórico caxiense.
Museu Municipal de Caxias do Sul
O Museu Municipal Maria Clary Frigeri Horn, o mais antigo da região Nordeste do RS, amplia as primeiras décadas do município, com o início do processo imigratório, o trabalho da época, além da religiosidade e arte sacra. Ao mesmo tempo, há um espaço destinado para a industrialização. Todos os itens são originais, sendo doações de descendentes. É calculado que todo o acervo do museu tenha mais de 15 mil itens.
Como descreve Comarú, a exposição segue uma ideia implantada pela pesquisadora e museóloga Tânia Tonet, de ser apresentada como um museu do trabalho. No início, como descreve o diretor da pasta, é apresentada a perspectiva de transformação da terra, com as ferramentas que eram usadas para a derrubada da mata, as construções de engenhos e também a caça. Há, por exemplo, grandes armadilhas que costumam chamar atenção. Da mesma forma, aparecem os objetos que relembram a ligação da cidade e região com a produção do vinho, graspa e cachaça.
Entre a exposição, há ambientes como um balcão de farmácia do começo do século passado ou uma barbearia dos anos 1930. Na sequência, o visitante se depara com a sala Eberle, em que há a maquete dos antigos prédios da Metalúrgica Eberle. Logo depois, há um espaço voltado para a arte sacra e a religiosidade.
História do museu ligada à celebração
A história do próprio espaço, inclusive, está ligada às celebrações. Quando foi criado, em 1947, o espaço era um museu de história natural, localizado na Rua Doutor Montaury, em frente à Praça Dante Alighieri. A peça um dele, por exemplo, era um urubu empalhado. Em 1974, às vésperas do centenário da Imigração, o museu muda-se para o atual espaço, que era o antigo prédio da prefeitura, e passa a ser um museu voltado para valorizar a história da imigração. Comarú afirma que atualmente também se trabalha para abraçar outras histórias e culturas que também foram importantes para a construção da cidade:
— A nossa intenção é que, gradualmente, consigamos configurar o Museu Municipal como realmente um espaço municipal, valorativo de todas as presenças na cidade. Os italianos são importantes. A cidade é composta por muitas mãos, e eu acho que o Museu Municipal deve apresentar isso também.
O local conta ainda com espaço para exposições itinerantes e núcleo educativo.
Museu Ambiência Casa de Pedra
O espaço mais simbólico em Caxias quando se trata da Imigração Italiana é a Casa de Pedra. Erguida no final do século 19 pela família Lucchese, na então 9ª Légua — hoje, bairro Santa Catarina, ela não apenas é uma marca do início do processo migratório, com arquitetura, móveis e utensílios típicos da época, como é uma memória da jornada dos primeiros imigrantes. A professora de história Ana Carla Kukul, que atua como guia no Museu Ambiência Casa de Pedra, acredita que essa é a principal história contada pelo local:
— É a jornada do vencedor. Temos que imaginar o cenário de quando os imigrantes chegaram aqui. Eles eram trazidos pelos tropeiros ou pelos índios até Nova Milano. Ali se começava uma outra vida para eles, mas não aquela contada pelos agentes da imigração. Eles chegam, tinham para comer frutas, muito pinhão, e sabemos pelas cartas dos imigrantes que pediam muitos objetos para as pessoas que estavam na Itália. O nosso imigrante foi um herói todos os dias, porque todos os dias ele tinha que, com frio, com fome, imagina pensando hoje, o cara desbravando uma mata, cerrando as araucárias para construir uma casa. Ele não tinha nem potencial energético para manter o corpo, porque ele não tinha o que comer, ele comia o que tinha. Para mim é a saga de um vencedor, com a vontade de fazer acontecer este lugar.
A construção, que passou por algumas reformas durante a história centenária, apresenta pedras assentadas e rejuntadas com barro, com aberturas em pinho falquejado. Na época em que foi construída, relembra a professora, a construção foi uma grande obra de engenharia, inclusive utilizando pedras do Arroio Tega. Atualmente, no interior dela, todos os itens foram doados. São apresentados uma sala de refeições, a cozinha e o quarto. O museu existe desde 1975 - justamente para celebrar o centenário da Imigração, quando ela foi comprada pela prefeitura. Antes, foi propriedade de três famílias: além dos Lucchese, passou pelos Brunetta e pelas mãos dos Tomazzoni. Até por conta disso, além de moradia, também serviu como comércio e outros serviços.
No quarto, por exemplo, a cama de palha pode ser vista, junto a uma mala da época, o guarda-roupa do imigrante ou os quadros religiosos. Na cozinha, o balcão com gavetas para guardar a comida, utensílios e o espaço que era utilizado no preparo de alimentos, com fogão à lenha.
Museu Nacional ao Imigrante
Inserido nessa história, mas com um olhar abrangente, está o Museu Nacional ao Imigrante. Inaugurada em fevereiro de 1954 pelo presidente Getúlio Vargas, a obra foi idealizada nas celebrações dos 75 anos da Imigração, em 1950. Os quadros vistos no Obelisco do monumento simbolizam a chegada dos italianos na região, bem como a vitória pelo trabalho e a integração com a pátria, enquanto a estátua do escultor gaúcho Antonio Caringi utilizou uma fotografia dos imigrantes italianos Luigi e Enrica Zanotti.
Nos pés do monumento está o Espaço Cultural Antônio Caringi. Por meio de expografia e itens relacionados à imigração, o ambiente recorda, com dados, essa história. Mais do que isso, como destaca a produtora cultural da SMC Gabriela Menegazzo, o monumento e a exposição também têm o objetivo de retratar todas as culturas que ajudaram a construir a cidade, como poloneses, alemães e também os povos originários — que estão expostos nesse museu.
— Nós, enquanto secretaria da Cultura, sempre temos essa sensibilidade de relatar a história de como ela é, mas também lembrar e conscientizar dessa diversidade imigratória que nós temos aqui em Caxias do Sul — declara Gabriela.
Até para trazer essa valorização multicultural, o Monumento ao Imigrante recebeu no ano passado a Semana Alusiva ao Dia Nacional do Imigrante, com ações voltadas às imigrações contemporâneas, como venezuelanos e senegaleses. Uma segunda edição é preparada para esse ano.
Arquivo Histórico de Caxias do Sul
Enquanto os museus expõem itens que relembram a Imigração, o Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami tem preservada a história a partir de documentos de origem pública e também daqueles que foram doados. O acervo, que obviamente reúne a documentação da cidade desde o período colônia, a partir de 1875, está dividido em três setores: Unidade Arquivo Público, Unidade Arquivos Privados e a Unidade Banco de Memória Oral.
Em cada um dos setores há itens raros e fundamentais para a história local. Na Unidade Arquivo Público, por exemplo, há um livro com o registro da chegada dos primeiros imigrantes em Caxias. Há informações sobre quais eram as famílias, quem eram os membros, a região de origem e quais lotes foram adquiridos por eles.
— Pelo que lemos, a ideia não era fazer o levantamento dos imigrantes e da quantidade, era fazer um levantamento dos que já tinham quitado os seus lotes. É um registro a partir de 1884 — explica a servidora Elenira Prux.
Na unidade também há um mapa dos anos 1930 com a divisão territorial da cidade, feita então por léguas, e até da região. Nele, está demarcado o Travessão Milanês, onde fica Nova Milano, o berço da imigração. Junto desse registro há ainda correspondências da época, com descrição de como era viver na Serra nos primeiros anos da imigração.
— Acreditamos que nas correspondências tenham registros da presença do indígena — descreve Elenira.
Outro item raro no acervo é o álbum Recordação das Colônias, que acredita-se que era usado como uma propaganda para imigração. Nele, há fotos de como eram os municípios da Serra na época, ao melhor estilo faroeste. Os registros são entre 1885 e 1900. Os arquivos podem ser acessados pela plataforma de pesquisa online da repartição municipal.
Doações também recontam história
A própria história do Arquivo Histórico está ligada às celebrações do centenário da chegada dos imigrantes. Em 1975 foi iniciada a montagem do acervo num espaço junto ao prédio do Museu Municipal na Rua Visconde Pelotas — a inauguração ocorreu em 1976. Parte fundamental para o início foram os documentos recolhidos pelo próprio João Spadari Adami, doados pela família dele ao município em 1974. Alfaiate e barbeiro de profissão, Adami tornou-se historiador e escritor por vontade própria, sendo um dos primeiros a se interessar e começar a documentar a história de Caxias.
— Ele escreveu diversos livros sobre a história de Caxias do Sul. Ele foi uma das primeiras pessoas que se interessou pela história da cidade, pesquisas que usamos até hoje — destaca a diretora do arquivo, Catiuscia Xavier.
O arquivo também recebe doações de documentos originais de outras famílias, empresas ou entidades. A documentação, após uma organização, vai para a Unidade Arquivos Privados. Da imigração, esse acervo conta com registros como os passaportes utilizados pelos imigrantes e documentos de época, como uma certidão de bons antecedentes necessária para emitir o passaporte. Há até mesmo um passaporte de 1897, assinado por Borges de Medeiros, de um imigrante que precisava retornar à Itália.
Também entre os itens do arquivo privado está uma imagem que mostrava como era a moradia dos imigrantes nos primeiros anos. Eles ficavam num barracão e em tendas ao redor dele. O ponto era na Avenida Júlio de Castilhos. Em outras fotografias há um registro também dos moradores daquele tempo fazendo a travessia do Rio Caí ou até mesmo a construção da linha de trem.
Por serem itens da Unidade Arquivos Privados, prévias são disponibilizadas na plataforma de pesquisa do Arquivo Histórico. Para acesso, os interessados devem passar pelo atendimento da repartição. Para utilização, por exemplo, é necessária a assinatura de uma declaração para uso.
Já na Unidade Banco de Memória Oral, a história de Caxias, incluindo a da imigração, pode ser pesquisada de um jeito diferente. Fundado em 1980, justamente para documentar histórias de imigrantes vivos da cidade, o setor realiza e reúne entrevistas sobre os diferentes temas que constroem a história caxiense. Ou seja, ao contrário das outras unidades que preservam documentos, esta faz a produção deles. A primeira entrevista registrada desse arquivo é a de Aurora Pezzi Ungaretti, filha do italiano Abramo Pezzi, professor que dá nome a escolas da cidade. Hoje, são mais de 1,2 mil entrevistas documentadas.
— Começou com temas sobre imigração. Depois foi se diversificando ao longo do tempo, então temos os mais diversos temas: indústria, comércio, educação, presos políticos, e assim vai. E também, claro, fomos vendo essa necessidade também de incorporar, deixar ele ainda mais participativo, dando voz também a grupos, digamos assim, historicamente marginalizados, no caso dos negros, pessoas LGBTs, e também inclusão social — explica a servidora Graciela Rodrigues.
Pela plataforma, a síntese das entrevistas podem ser conferidas e também solicitadas ao arquivo. A transcrição delas é disponibilizada. Em celebração aos 150 anos, a unidade disponibilizou na íntegra uma série de entrevistas que tinha sido realizada justamente para a comemoração dos 120 anos da imigração. Um pequeno trecho em áudio também é anexado para que o leitor possa conhecer a voz do entrevistado.