Moisés Mendes
Preparem-se para o que a promotora Lúcia Helena Callegari já está preparada. Cercada por pastas de inquéritos e processos, em seu gabinete na sede do Ministério Público, Lúcia Helena avisa:
- Este caso vai para júri popular. E eu estarei lá.
O Caso Eliseu Santos, que a promotora virou pelo avesso, já está na sua agenda do ano, apenas com data em aberto. Lúcia Helena, 37 anos, gosta de júris. Quando atuou em Caxias do Sul, chegou a participar de 20 julgamentos num mês. Às vésperas de um júri, dorme apenas quatro horas. Estuda, destrincha detalhes, dedica-se a cada caso como se fosse único:
- Jurados têm experiência de vida. O jurado é sábio.
É para a arena de um júri que a promotora quer levar as sete pessoas que apontou como responsáveis pelo assassinato do secretário de Saúde da Capital Eliseu Santos, na noite de 26 de fevereiro. Ao denunciá-los por homicídio, como crime encomendado, Lúcia Helena desconstruiu o inquérito policial, que indiciava três pessoas por um latrocínio (roubo com morte). Ela apontou mais quatro participantes. A tese da polícia submeteria o caso ao julgamento de um juiz, sem participação popular. A tese da promotora pode levar os sete acusados a júri.
Promotora desde os 25 anos, a acusadora não inovou no Caso Eliseu. Sempre foi detalhista. Para ela, um inquérito policial muitas vezes é uma peça em aberto. Mostra sobre a mesa um inquérito de homicídio de 2005, que recebeu da polícia sem identificação de autoria. O inquérito tinha duas pastas. Agora, tem 10. Lúcia Helena vai perseguir, até esgotar todos os recursos, a autoria do crime, porque sempre age assim. Pede mais informações à própria polícia, ouve parentes, testemunhas. Quando o crime envolve tráfico, vasculha seus arquivos com prováveis suspeitos, confere apelidos que levem a um nome:
- Num processo, tenta-se recriar um passado. Espera-se chegar à verdade ou o mais próximo da verdade, porque na área jurídica a verdade absoluta é utópica.
Promotora lê desde Erico até livros de Harry Potter
Como a maioria dos casos envolve a criminalidade das periferias, tenta entender o entorno do crime. Vai às vilas:
- Quero compreender a vida de pessoas que pegam ônibus de madrugada para trabalhar, que vivem sob tiroteios e balas perdidas. Tento contribuir para que a vida delas seja melhor. Não passo a mão na cabeça de criminosos.
O promotor Luís Antônio Portela, que trabalhou por cinco anos ao lado de Lúcia Helena na 1ª Vara do Júri, onde a promotora ainda atua, diz:
- Ela não fica no gabinete. Conhece todas as vilas de Porto Alegre, conhece quadrilhas. . É o promotor mais competente de Vara do Júri que conheço.
O advogado Felipe Barcelos, 25 anos, trabalhou com a promotora de 2007 a 2009. Ex-estagiário da 1ª Vara, ele conta um caso em que Lúcia Helena conseguiu identificar um coparticipante de homicídio porque catou, entre peças recolhidas pela perícia, um pedaço de fita adesiva com impressão digital:
- Ela chama e ouve parentes de vítimas, e muitas vezes a acompanhei aos locais onde ocorreram os crimes.
No Caso Eliseu, Lúcia Helena ouviu 28 pessoas até ontem. O inquérito chegou ao seu gabinete, em 17 de março, por acaso, como sempre acontece. Os promotores estão numa fila, e os inquéritos são distribuídos pela ordem de entrada. A promotora conduziu sozinha as investigações complementares, até concluir que se tratava de homicídio. Os três colegas da 1ª Vara decidiram assinar a acusação enviada à Justiça contra os envolvidos. Foi uma manifestação de convicção e de coesão da equipe, diante de um crime de repercussão que a polícia classificara como latrocínio já esclarecido.
Lúcia Helena nasceu em Florianópolis, onde os pais moravam. Mas a família é da serra gaúcha. Foi professora da Escola Municipal Rubem Berta e funcionária do Banco do Brasil, antes de se formar em Direito, na Universidade de Caxias do Sul. Melhor aluna da turma de 1994, ganhou uma bolsa na Escola Superior do Ministério Público. Quatro anos depois era promotora. Atuou em Palmeira das Missões e Caxias, e há seis anos está na Vara do Júri em Porto Alegre. O pai, o odontólogo Sergio Callegari, relembra que ele e a mulher, Maria Helena, pediam que a filha adolescente parasse de estudar depois da meia-noite. A menina recolhia-se ao quarto e fingia dormir. De madrugada, flagravam barulhos e luz acesa na sala de jantar. A filha estava lá, estudando.
Lúcia Helena sempre gostou de ler. Leu toda a obra de Erico Verissimo. Já promotora, consumiu todos os livros do bruxinho Harry Potter, "por causa da magia. Hoje, só tem tempo para inquéritos e processos. Leva as pastas para casa nos fins de semana:
- Canalizo toda minha energia para cada processo. Trato o processo sobre a morte de Eliseu Santos como sempre tratei todos os outros. Minha fonte de inspiração é meu avô materno, Túlio da Cruz Lima (advogado, já falecido, que foi delegado do Trabalho no Estado). Ele lutou pelos direitos trabalhistas. A minha jornada é contra o crime.
Ao conversar com ZH, alertou que não falaria sobre questões pessoais e a família. Mas revelou um acordo íntimo, que espera seja cumprido pelos Callegari daqui a muitas décadas:
- Já pedi: me enterrem com a minha toga.