
De um lado, o poderoso Grêmio de estrelas trazidas a Porto Alegre com o forte investimento da empresa suíça ISL, e que tinha em Ronaldinho Gaúcho a promessa de se tornar o maior craque do futebol brasileiro na virada do milênio. Do outro lado, o modesto time do Interior, que já havia feito uma façanha ao conquistar o primeiro turno e que, mesmo com salários atrasados, encontrava forças e organização para desafiar mais uma vez um gigante.
E, no final, quis o destino que o Caxias escrevesse uma das mais belas páginas da história do Campeonato Gaúcho.
Campeão em 2000 de forma incontestável, o time comando pelo jovem e promissor Tite, na época com 39 anos, despertou os olhos de um país inteiro com a conquista do Estadual.
— Talvez a frase mais emblemática da conquista do título gaúcho foi que ele foi feito e foi conquistado a muitas cabeças, a muitas mãos e a muitos pés. Nós tínhamos uma comissão técnica muito qualificada, staff, e nós tínhamos um grupo de atletas que a direção entendeu que pra ser campeão. Não precisávamos apenas de 11 — relembrou Tite.
Em entrevista exclusiva ao Pioneiro, o treinador da conquista grená reviu imagens da campanha vitoriosa de 2000, recordou momentos marcantes e bastidores de um título que até hoje é o maior da história do Caxias.
Confira os principais trechos da entrevista de Tite:
Vitórias nos dois clássicos
— O Juventude foi campeão da Copa do Brasil no ano anterior. Então, ele tinha um marco, um patrocínio muito forte, e nós buscando uma equipe construída de 1999 pra 2000. E o primeiro clássico, no Jaconi, nós ganhamos por 1 a 0. E o segundo, era Dia das Mães, e fizemos 3 a 0. E lembro perfeitamente. O Luciano Araújo, um meio-campista, entrou no jogo (marcando dois gols) e o Gilmar (Dal Pozzo) pegou um pênalti. Então, foi bastante emblemático, que mesmo estando classificada, era uma equipe que tinha um grau de competitividade, uma qualidade muito alta.
Virada de chave no Ca-Ju?
— Eu não sei se virada de chave é o termo exato, mas o Juventude ele manteve aquele nível, porque tinha uma equipe que era muito qualificada, com Lauro, Mabília. Porém, eu prefiro colocar dessa forma: a evolução do Caxias ela foi muito grande. E ele superou aquilo que tu dizes assim, tu imaginavas? Não, eu não imaginava. Mas o trabalho de dois anos foi consolidando, uma equipe já na Série C do Campeonato Brasileiro do ano anterior se formatando e tendo essa experiência com qualidade desses 17, 18 jogadores, e depois alguns jovens.
Escolhas difíceis
Nós tínhamos que enfrentar o Cruzeiro em Minas na quarta (pela Copa do Brasil) para decidir no domingo contra o Grêmio o título no primeiro turno que podia nos conduzir à disputa da final do Gauchão. Não dá para potencializar os dois. O que nós vamos fazer? Vamos priorizar, vamos dar importância à disputa com o Grêmio na final. Uma equipe que já não tinha uma estruturação vai com uma equipe que não era a titular enfrentar o Cruzeiro no Mineirão. Me dói o que eu estou falando. Nós perdemos de 6 a 1. Dói a alma. Eram três horas da manhã, eu não dormia. E tinha o nosso supervisor, o Pé (Vanderlei Bersaghi), e dizia assim: "Calma, professor, a gente escolheu". Eu digo, Pé, calma nada. A gente não pode tomar seis nem do Real Madrid. O senso competitivo. Mas nós sabíamos que tinha ficado toda a equipe aqui treinando, auxiliar-técnico, treinador de goleiros, pra potencializar esse jogo.
Vitória no 1º turno
— Um momento marcante também foi quando a gente venceu o Grêmio no primeiro turno. O Adão faz uma arrancada lá da esquerda, ele "atropela o zagueiro". O Ivair faz o gol de falta. Naquele momento eu digo: "cara, nós ganhamos o primeiro turno, agora a equipe consolida, a autoestima dela se eleva". Se houve um momento em que o presidente falou que a gente estava inconstante, fiz uma cobrança muito forte com o grupo pra que a gente retomasse. Enfim, acabou retomando. Aquele era o momento em que se consolidou uma equipe forte. Vencer o Grêmio no Olímpico, e ser campeão no primeiro turno, chancela a qualidade.
Desempenho abaixo no segundo turno

— É um campeonato com Juventude, com a qualidade que tinha, o Grêmio com a qualidade que tinha, o Internacional com a qualidade que tinha. É inevitável tu oscilares um pouquinho. Teve muito boato de que nós, contra o Grêmio (na rodada final), entregamos o jogo. Eu vou ser sincero, o Sílvio (goleiro gremista) foi o melhor jogador naquele jogo, ele pegou tudo. Era para nós termos vencido, mas aí o Grêmio nos venceu e nos remeteu ao jogo final.
Os incríveis 3 a 0
— Nós queríamos ter uma vantagem em casa, e tu imaginavas fazer com um placar tão dilatado com exuberante, talvez esse seja o adjetivo, um exuberante, extraordinário desempenho como teve? Não, não esperava. Mas a equipe vinha numa crescente, mantendo um padrão ao longo do campeonato. Nós ganhamos de todas as equipes. Ganhamos Ca-Jus, nós ganhamos do Inter, nós ganhamos do Grêmio. A final, eu tenho a fita da narração (da Rádio Gaúcha) em que o Ruy Carlos Ostermann faz um comentário depois que está 3 a 0 e há um cruzamento, o Adão cabeceia e a bola sai pra fora, podia ser o quarto gol. E aí o Ruy entra com um comentário e diz: "É incrível, está 3 a 0 para o Caxias e o Caxias continua atacando o Grêmio". E depois, falando com o Seu Antônio Carlos Verardi, que era diretor do Grêmio, ele falou assim: "A gente pensou que tinha condição de reverter". Mas por quê?, perguntei a ele. "Porque era pra vocês terem feito muito mais gols em nós".
Adiado pela chuva
— Nós fomos ao Beira-Rio e o gramado estava seco. No Olímpico, entramos no suplementar e vimos que estava empoçado realmente, tinham fechado os drenos, e nós quietos, e o doutor Aloir (de Oliveira) junto. Quando voltamos e estamos saindo, tinha o presidente da Federação (Emídio Perondi), e o (Carlos Eugênio) Simon, o árbitro.
E aí o presidente da Federação, disse: "Gringo, não dava para jogar, né?". Quando ele falou isso daí, eu virei para ele, e digo: o quê? Nós jogamos uns oito jogos pior que isso daí, vocês estão de sacanagem, o que vocês estão pensando, pô! O gramado está bom, o suplementar está bom, e esse aqui, como é que é?".
Mas o adiamento serviu também para a cabeça estar legal, para estar mobilizada para esse momento para o jogo que passou de domingo para quarta-feira.
A frase da inspiração grená

— Lá na concentração dos atletas tinham feito uma referência a alguma equipe que, com uns dizeres, ficou marcante para mim: "vocês podem até nos vencer, mas vão ter que arrancar esse título de dentro dos nossos corações". Teve um componente meio de inibição, um jogo mental das direções. A direção do Grêmio e a direção do Caxias. "Aqui vai ser diferente, aqui nós vamos atropelar, ", diziam eles (dirigentes do Grêmio).
E a direção aqui respondeu que nós tínhamos que vencer lá dentro do campo. O (Nelson) D'Arrigo colocou essa situação. Então, a final teve esse componente. E aí me surgiu essa frase: "eles podem até nos vencer, mas vão ter que arrancar de dentro do nosso coração". E no término de uma palestra, cada um de nós assinou. E aí me deu o start. Digo para a minha esposa: faz isso daí estampado, que vai ter uma camisa para cada um.
Não é uma motivação, é uma fonte geradora de confiança. Porque ali estava representado dois anos de trabalho. Não era um jogo só que tu vais dar um estalo e que terá varinha mágica, mas é uma construção de dois anos que estava ali em jogo, representado nessa frase.
Tite, 25 anos depois
— Existem alguns gatilhos, alguns momentos que são cruciais na nossa carreira e talvez a gente encontre alguns anjinhos durante essa carreira. Foi assim em Veranópolis, foi assim no Caxias. Uma série de nomes a quem eu tenho gratidão, que proporcionaram um tempo de trabalho. Então, essas situações me remetem a um nível que eu pudesse vislumbrar uma ascensão na carreira. E a gratidão eu tenho, inconteste.


