
A produção do queijo artesanal serrano tem mais de dois séculos de histórias. Uma receita que, conforme pesquisas, chegou com imigrantes portugueses aos Campos de Cima da Serra, ainda na primeira metade dos anos 1800.
Passados mais de 200 anos, apesar do incremento da tecnologia no campo, a rotina dos produtores rurais segue a mesma lógica: tirar o leite, preparar o queijo, virar o queijo, maturar, vender e/ou consumir.
O queijo serrano leva na produção apenas três ingredientes: leite cru, coalho e sal. A textura amanteigada, o aroma e o sabor se acentuam com a maturação, que é de 60 dias, entregando um produto único.
Uma das características do queijo artesanal serrano é que o leite deve ser de gado de corte ou misto, não podendo ser vacas puras de leite. Tradicionalmente, o rebanho se alimenta à base de pasto com campo nativo. No entanto, em estações como o inverno, pode haver o complemento com plantas forrageiras, como azevém.
— Por isso que aqui na altitude mais próxima de 800 metros, onde tem pastagem de campo nativo e algumas bactérias, fungos e leveduras que se desenvolvem e dão aroma para alimentos minimamente processados, como é o caso do queijo serrano, contribui bastante para determinar que a região dos Campos de Cima da Serra é a única no Rio Grande do Sul, que pode produzir o queijo artesanal serrano — explica o coordenador do trabalho com o queijo serrano e gerente-adjunto da regional de Caxias da Emater, Orlando Junior Kramer Velho.
Conforme a Emater, cerca de 1,5 mil famílias de pecuaristas familiares produzem atualmente queijo artesanal serrano nos Campos de Cima. A produção anual é estimada em 1,5 mil toneladas. A grande maioria das propriedades é de pequenos produtores, com no máximo 10 quilos diários.
— Ele é um queijo daquele território, dos Campos de Cima da Serra. E eles têm uma produção bem artesanal, pequena, que praticamente é escoada naquele território (ou) por turistas, chega alguma coisa em Gramado, Caxias. (Já) Em Porto Alegre, muito pouco. Eles têm uma produção pequena, e não têm intenção de mudar esse modelo, que é o que dá uma sustentabilidade daquele sistema — aponta a doutora em Ciências Veterinárias e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Saionara Araujo Wagner.

Primeiro queijo com DO
Após estudos de mais de 20 anos, o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi) publicou a concessão da Indicação Geografia (IG) na modalidade Denominação de Origem (DO) “Campos de Cima da Serra” para o queijo artesanal serrano em março de 2020. Essa foi a primeira IG para queijos nacionais.
A IG representa reconhecimento das especificidades da região e a valorização e proteção do produto. Ela foi concedida em nome da Federação das Associações de Produtores de Queijo Artesanal Serrano dos Campos de Cima da Serra do RS e SC (Faproqas).
— Na época não existiam queijarias registradas, e precisávamos primeiro da legalização da produção, que trabalhávamos com pilares de qualificação, legalização e capacitação com respeito ao meio ambiente para conseguirmos valorizar o produto. Quando conseguimos as primeiras legislações aqui no Estado, vimos que a identificação geográfica poderia valorizar ainda mais esse queijo, e foi o que realmente aconteceu — aponta Orlando Junior Kramer Velho.

A IG foi concedida para 18 municípios de Santa Catarina e 16 do Rio Grande do Sul. No RS, integram a área da IG: Vacaria, Bom Jesus, São José dos Ausentes, Cambará do Sul, Campestre da Serra, Caxias do Sul, Ipê, Jaquirana, Monte Alegre dos Campos, Muitos Capões, São Francisco de Paula, Esmeralda, Pinhal da Serra, André da Rocha, Lagoa Vermelha e Capão Bonito do Sul.
Para acompanhar e validar as ações das queijarias que integram a IG foi criado o Conselho Regulador, que é o órgão social responsável pela implementação, gestão, manutenção e promoção da Indicação Geográfica.
Alguns dos requisitos para conseguir a IG são:
- Produzir o queijo conforme as características.
- A queijaria deve estar legalizada.
- Ter matas de araucária e campo nativo onde as vacas frequentem.
- Executoras de boas práticas de fabricação.
- Sanidade do rebanho.
- Produtores tenham passado por capacitação.
- Que no município tenha registrado o queijo.
- Que as vacas sejam cruzadas ou somente corte (não é aceita pura de leite).
Patrimônio do RS
Em outubro de 2024, o modo de fazer queijo artesanal serrano se tornou patrimônio imaterial do Rio Grande do Sul. O trabalho de inventariação foi feito por representantes da Emater e da UFRGS, com a assessoria técnica do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado (Iphae), instituição da Secretaria da Cultura do RS (Sedac).
Conforme o parecer técnico nº 007/2024, emitido pelo Iphae, a essência e os métodos tradicionais foram preservados, mesmo com as inovações tecnológicas, como a prensa hidráulica e o coalho industrial.
— Quando dizemos que o modo de fazer foi patrimonializado, é para sairmos um pouco da questão só do elemento queijo, e ir para o espaço onde essas pessoas vivem, a rotina de vida, e isso associado ao fazer e ao comer esse queijo, porque ele faz parte da vida e da cultura alimentar das pessoas que vivem lá — explica a professora Saionara Araújo Wagner.
Paixão para quem produz

É na localidade de Matemático, distante cerca de 43 quilômetros da região central de Bom Jesus, que está uma das queijarias mais reconhecidas dos Campos de Cima da Serra, a Pelizzari, tocada por Celso e a esposa Elaine.
Celso aprendeu com a família a produzir o queijo serrano. O mesmo aconteceu com Elaine. Há 29 anos, quando se casaram, intensificaram a produção. Nem sempre foi fácil, o produtor rural lembra que houve momentos em que “dava vontade de desistir”. Mas o empenho e a força de vontade falaram mais alto.
— Aqui (na região) o pessoal se criou fazendo queijo para vender, o dinheiro da comida era o queijo — conta Celso Pelizzari.
A queijaria foi construída há sete anos, e a formalização do empreendimento se deu em 2020. Para a produção do queijo serrano eles mantêm uma média de 13 vacas na ordenha, que começa com o clarear do dia. A produção média diária é de 10 quilos, que acaba sendo escoada principalmente em Bom Jesus e Jaquirana — cidade vizinha, distante cerca de 16 quilômetros da propriedade. As peças têm em torno de 750g, e o quilo é vendido a R$ 80.
— A procura do queijo está bastante grande, mas o que eu comento é a produção que é pouca, porque é artesanal, e não tem o porquê de expandirmos, não é uma indústria. Mas a procura é grande, é de Minas, Porto Alegre, Ijuí, tudo o que imaginar, e a questão é a logística. Como já temos no comércio em Bom Jesus e Jaquirana, não tem por que não entregar ali. Procuramos ter o produto, e os turistas que quiserem vir são bem-vindos — afirma Elaine.
Na rotina, Celso e a esposa seguem à risca os requisitos de saúde do gado e da produção. São feitas, rotineiramente, análise de água, leite e queijo, além de exames de brucelose e tuberculose nas vacas. Eles possuem o Selo Arte, que permite vendas fora do Estado.
A Queijaria Pelizzari foi a primeira do RS a ter denominação de origem, ainda em 2022. E os queijos também são premiados. Já receberam a medalha de prata em concurso da Associação Gaúcha de Laticinistas e Laticínios (AGL), em 2022, e bronze em 2023. Mas, neste ano veio a grande conquista, com a medalha de ouro com um queijo que passou por uma maturação de 92 dias.
— São duas paixões que eu tenho na vida, o queijo e a minha família. Para mim (o queijo serrano) é tudo — se emociona Elaine, que aprendeu a fazer o alimento com a mãe.
Herança centenária

José Luiz Marques Cardoso e a esposa Inêz da Luz Cardoso são reconhecidos pelo queijo que produzem na Sopro do Minuano. Uma história familiar que começou com o bisavô dele há mais de cem anos, em 1908, e que passou de geração para geração. Eles vivem em Cazuza Ferreira, distante 92 quilômetros do centro de São Francisco de Paula e 78 quilômetros de Caxias do Sul.
— Eu me lembro de estar em casa e o pai sair para levar os queijos em tropa. Esse tipo de coisa (ir junto) a gente não acompanhava, era muito criança, mas temos a lembrança da época que saíam nos cargueiros, eles não levavam só queijo, juntavam mais coisas e vendiam — conta o produtor.
Apesar dos mais de cem anos de produção na família, o projeto de construção da queijaria começou em 2015, com as obras tendo começado em 2016. O primeiro queijo após a formalização, que contou com o apoio da Emater, saiu no dia 25 de junho de 2017.
Atualmente, José Luiz e Inêz têm 10 vacas na ordenha. A produção mensal é de cerca de 150 quilos. Cada peça vai para o processo de maturação, que dura em média 60 dias, com mais de cinco quilos. No entanto, após esses dois meses, chegam prontas à venda com 4,2kg, uma quebra natural do processo. Além disso, também comercializam porções fracionadas. O quilo é vendido por R$ 90.
Os queijos são quase todos vendidos por José Luiz, que leva, principalmente, para cidades como Caxias do Sul, Gramado e Canela. Mas há vendas para Bento Gonçalves e Porto Alegre. A Sopro do Minuano foi a primeira queijaria a receber o Selo Arte, que permite a comercialização para fora do Estado.
— Temos que considerar a matéria-prima, desde o leite da vaca, na saúde da vaca, um depende do outro para chegar na qualidade final do queijo serrano. A qualidade do queijo serrano é quando ele atinge a maturação, depois dos 30 dias tu vai vendo e ele vai melhorando, mas dos 60 dias aos 90 ou 120 dias, é o parâmetro melhor do queijo. Quanto mais maturado, melhor — explica Cardoso.
A Queijaria Sopro do Minuano também é bastante premiada, como o primeiro lugar no Concurso de Queijos Artesanais do Rio Grande do Sul.
— Para nós é tudo, é a alma do trabalho, fomos criados (assim). Dentro da cultura das pessoas dos Campos de Cima da Serra, quase todas as famílias têm o seu sustento à base do queijo serrano.
Produção em família
Foi ainda em 1999 que Marizete Aparecida chegou ao lado do marido Henrique à propriedade onde hoje fica a Agroindústria Fazenda Souza Pereira, distante mais de 30 quilômetros da cidade de São José dos Ausentes.
Assim como a grande maioria dos moradores dos Campos de Cima da Serra, aprendeu o feitio do queijo artesanal serrano com a mãe. Apesar de mais de 20 anos na produção, o movimento de venda, conforme ela, melhorou a partir de 2024, após a inspeção do município, e do apoio da Emater, que garantiu a regularização e formalização.
— Abriu mais novas portas, o turista gosta de vir pegar o queijo certificado — revela Marizete.
Atualmente, a família produz oito quilos diários no verão e quatro no inverno, em peças que variam de um a dois quilos. Na estação mais quente do ano são 20 vacas na ordenha, enquanto no frio cai pela metade. Com um produto que segue à risca os 60 dias de maturação, vendem o quilo na média de R$ 80. O queijo é um complemento na renda da família, que também comercializa pinhão e trabalha com o gado de corte.
A Agroindústria Fazenda Souza Pereira já recebeu prêmios como a medalha de prata no 7º Prêmio Queijo Brasil, e o ouro no 3º Concurso de Queijos Artesanais do Rio Grande do Sul. Os desafios, conforme Marizete, são diários, mas ter as certificações e seguir os procedimentos sanitários traz certa tranquilidade.
Para a alegria do casal, a produção do queijo conta também com a parceria dos filhos deles, Murilo e Milena.
— Um completa o outro, cada um faz a sua parte e assim acontece. O queijo serrano é aquela história que vem de família, que trazemos no sangue e estamos passando para os nossos filhos, assim como foi passado para nós, pretendemos que os filhos sigam esse caminho.