Bagaço de cana e uva, garrafas de bebidas, lonas de caminhão usadas. Regularmente esse conjunto de resíduos é descartado em grandes proporções por empresas e estabelecimentos da Serra. Contudo, entre os containers e o aterro, outro destino é possível: o retorno para o mercado como novos produtos de valor agregado.
Foi justamente com essa visão de negócio circular que os alunos do curso Tecnólogo de Processos Gerenciais do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS) de Farroupilha foram instigados a desenvolver soluções para reutilizar resíduos locais e inseri-los no mercado.
O projeto integra a etapa final do curso, envolvendo 40 estudantes que foram divididos em cinco grupos. Os alunos precisaram estruturar o negócio semelhante ao modelo das startups, planejando a inserção no mercado com uma cadeia sustentável.
— A proposta era que cada grupo apresentasse um produto inovador e sustentável, tendo como fornecedor pessoas ou empresas aqui da região, para fomentar a economia local. A sustentabilidade é tema constante na sociedade e é perfeitamente possível transformar resíduos em produtos e fazer disso algo rentável — explica a professora Tânia Craco, uma das coordenadoras do projeto.
O resultado dos trabalhos, que estão em desenvolvimento desde o início do ano, será apresentado à comunidade nesse sábado (14) em uma feira. O evento acontece das 10h30min às 17h, no salão paroquial de Farroupilha. Além de conhecer os produtos, o público poderá adquiri-los.
Capa para guarda-chuva feito com lona de caminhão
A maleabilidade e resistência à água das lonas foi aproveitada para tornar os dias chuvosos menos molhados. A partir de um molde, elaborado pelos próprios alunos, a lona é recortada e soldada no formato da capa. Basta colocar o guarda-chuva dentro para reter a água que caí do tecido. Para secar a capa é necessário colocá-la de cabeça para baixo e deixar a água escorrer. Valor do produto: R$ 25.
— A capa reduz o uso de plástico, como aquelas capinhas descartáveis e é muito prática no dia a dia. Depois de seca ela pode enrolada e guardada no porta luvas ou mochila. Gostaríamos que ela fosse implementada em hotéis, por exemplo, onde as pessoas retiram a capinha junto com o guarda-chuva — explica a líder do grupo Caroline Barcelos dos Santos.
Areia para gato de bagaço de uva
O subproduto das vinícolas da região pode ser matéria-prima para o segmento pet. O estudo dos alunos identificou que o bagaço da uva tem capacidade de absorção da urina dos gatos, além de reduzir o odor. O grupo não deu detalhes sobre o processo, pois está em processo de patentear o produto. Valor do pacote de 1,5kg: R$ 19,99.
— O mercado já tem uma linha de areais biodegradáveis, como de mandioca, milho e tofu, mas do bagaço da uva não. Aproveitamos o problema das vinícolas, que geram muito bagaço e não tem o que fazer, e trouxemos para outro setor, que tem muitos compradores em potencial — detalha a líder do grupo Ariane Wentz.
Umidificador de ambientes com garrafa de bebidas
Além da reciclagem tradicional de vidro, os estudantes optaram por repensar o uso de garrafas de bebidas. A ideia é simples: um corte no meio frasco transforma a parte de cima da garrafa no repositório de cloreto de cálcio. A peça é encaixada no corpo da garrafa e fechada com uma tira de juta. Depois, recebe o trabalho manual de artesãs de Farroupilha, que tornam o umidificador esteticamente atrativo. Valor: R$ 38,90.
— Ele é ideal para tirar a umidade de banheiros. Fizemos o teste e o cloreto de cálcio começa a agir em duas semanas. Quando o líquido acumula no fundo da garrafa, é só descartar na pia ou no vaso sanitário. Depois, é possível comprar o cloreto e reabastecer o umidificador — indica a líder do grupo Greice Melo.
Cerâmica fria com bagaço de uva
Outra opção para o uso do subproduto das vinícolas, o bagaço de uva foi incorporado à uma fórmula para cerâmica fria. A receita exclusiva, de autoria dos alunos, gera uma massa uniforme e macia, que depois de moldada endurece sem necessidade da queima. A massa tem durabilidade de 15 dias e pode apresentar variação no endurecimento conforme o clima. Valor: R$ 35.
— As peças de cerâmica estão muito em alta. Então, nossa proposta é que o público possa fazer suas peças em casa, de forma simples e sustentável. Outra ideia que tivemos é inserir esse produto em vinícolas e vendê-lo para os turistas. Além do vinho, ele poderia levar para casa um “pedacinho” aqui da Serra — explica a líder do grupo Amanda Benedetto.
Vasos biodegradáveis de bagaço de cana
Voltado para a jardinagem, os vasos elaborados a partir de bagaço de cana são uma alternativa para o plástico. A ideia dos alunos é que mudas sejam cultivadas nesses repositórios, que podem ser plantados junto da planta. O vaso leva cerca de seis meses para se decompor, sem causar danos ao solo. Valor da unidade: R$ 5.
— Usamos o bagaço gerado por tendas que fazem suco de cana e cachaçarias da região. É um trabalho manual, porque a gente faz a massa e molda ela no formato dos vasos. Seria muito bom se fosse mecanizado, até para ter outros formatos. Mas assim, não é um vaso que você vai ter em casa, como decorativo, ele precisa ser plantado — detalha a líder do grupo Jhenifer Finger.
Além do ambiente de pesquisa, é viável manter um negócio sustentável?
Há cerca de oito anos, o artesão e empreendedor de Flores da Cunha, Gilberto Rizzotto, decidiu reformular o negócio que mantinha com a família. Parou de fabricar calçados e acessórios em couro para reutilizar lonas de caminhões na confecção.
Entre botas, chapéus, coletes e até bolsas, a família conquistou um nicho de mercado que preza pela longa duração e impermeabilidade do tecido: os motoqueiros. Atualmente ele, a esposa e a filha se dedicam integralmente à produção artesanal dos calçados e peças, que são vendidos em encontros de moto em todo o país.
— Vivemos disso, indo de cidade em cidade, para fora do estado. Temos uma parceria com uma transportadora de Caxias do Sul, que nos destina as lonas. A cada dois ou três meses a gente recebe umas oito lonas de 80 metros quadrados. Desse material só sobram os retalhos, que a gente leva para destinação correta em Novo Hamburgo — conta.
Em Caxias do Sul, a artesã Melina Moreira assina uma linha de acessórios feitos com pastilhas de revestimentos. Há três anos ela dá nova vida a peças que sobram em obras ou acabaram não vendendo em lojas de materiais de construção. Os anéis, brincos e colares são vendidos em um ateliê no bairro Pio X, na feira da Maesa e nas redes sociais.
— Me inspirei no trabalho de uma marca de Curitiba. Hoje, cerca de 80% do material que uso é doação que sobram de obras e as pessoas não sabem o que fazer. Também reaproveito peças de mostruário. Nessa pequena produção, consigo a exclusividade, o que dá mais valor agregado ao produto — explica.
Outra proposta que a artesã está desenvolvendo é a confecção de acessórios com porcelana. A ideia é transformar um pedaço de louça antiga ou peça de família em um colar, mantendo a afetividade permanente.
Em mais de 30 anos de pesquisa voltada a degradação de plásticos, a professora da Universidade de Caxias do Sul (UCS), Rosmary Brandalise, concluiu que determinados materiais considerados “lixo” possuem qualidade equivalente à matéria-prima virgem.
— Em termos de material, temos sim, muitos resíduos com grande capacidade de retornar ao mercado. Essa economia circular que chamo “do berço ao berço” é uma necessidade, até porque o planeta está caminhando para um ponto em que a exploração dos recursos irá prejudicar as próximas gerações.