Nascidas nos Estados Unidos nos anos 1960, no seio da cultura hippie, as "head shops" eram lojas que vendiam produtos para os apreciadores da cannabis, além de alguns itens relacionados ao estilo de vida dos jovens da época, como camisetas e pôsteres. No Brasil atual, o debate cada vez mais aberto sobre os benefícios da maconha medicinal e a legalização, mesmo com restrições, para o cultivo da planta fizeram ressurgir a cultura das head shops, com um serviço agregado ao das tradicionais tabacarias, mas que em muitos estabelecimentos é o carro-chefe do negócio.
– Muita gente aproveitou este momento para sair do armário – comenta Geziel Bernardes, proprietário da Tabakombi, head shop situada no bairro Pio XII.
Além de atender a um público que tem na apreciação da cannabis ou do tabaco um estilo de vida, e que por isso gosta de investir em produtos descolados, como piteiras de vidro, bongs e pipes, cachimbos, dichavadores, trituradores e dezenas outros acessórios para tornar mais personalizado o ritual de fumar, lojas como a Tabakombi trabalham com o conceito de redução de danos. São espaços que se propõem a ajudar seus clientes a encontrar formas de minimizar os impactos negativos para a saúde:
– Enquanto a política proibicionista exclui a pessoa que utiliza algum tipo de psicoativo, a política de redução de danos não exclui, mas acolhe e fornece recursos para ela fazer de forma mais segura e consciente. Cada vez menos gente fuma cigarro. Antigamente tinha quatro marcas de tabaco no mercado, hoje tem mais de 30. E o tabaco não tem as 4,7 mil substâncias tóxicas do cigarro. Além disso, o pessoal usa cada vez mais filtros, usa piteira de vidro ou papel, porque, quanto maior é a distância entre a boca e a queima, mais reduz os danos – exemplifica Renata Squinalli, companheira de Geziel e terapeuta canábica.
Frequentador de festivais de música, principalmente eletrônica, Gesiel comenta que o insight para abrir uma tabacaria e head shop veio ao reparar que, num evento que reunia mais de 3 mil pessoas, o que ele mais via eram frequentadores pedindo entre si seda para enrolar cigarros. Já com o investimento inicial feito e diversos itens comprados para dar início à loja itinerante, a pandemia fez repensar o projeto e alugar uma sala para abrir a loja física. O que surpreendeu o casal é o quanto Caxias do Sul se mostrou terra fértil neste mercado, que só veio a ser explorado tão recentemente:
– Caxias, neste segmento de head shop, é mais forte até do que Porto Alegre. Eu vou a todas as lojas da Capital e lá não tem a mesma pegada. É outro perfil, de clientes que vão até o local para tomar cerveja e fumar narguilé. Ao mesmo tempo as pessoas também estão se mostrando mais abertas a conhecer essa cultura, que está cada vez mais desmistificada, e sempre que há mais conhecimento envolvido, todos ganham.
"Ainda é comum pessoas acharem que vendemos maconha"
Vindo de uma família tradicional no ramo de supermercados em Caxias, Erikson Suzin, o Zizo, abriu em 2020 a Bicho da Graxa, head shop no bairro Bela Vista. A ideia de reunir num único espaço todo tipo de produto relacionado aos universos canábico, esotérico, antiguidades, charutaria e de narguilés, além de vestuário e acessórios, veio a partir do conhecimento do área supermercadista:
– Principalmente naquela época, poucos tinham tido essa ideia de reunir tudo numa loja só. Porque a pessoa que vai fazer um churrasco, por exemplo, não gosta de ir a vários lugares comprar o que ele precisa. Com o meu público é a mesma coisa.
A loja começou numa sala comercial de 25 metros quadrados, com cerca de 3 mil itens. Menos de cinco anos depois, foi necessário expandir para outra sala dentro do mesmo prédio, de 160 metros quadrados, para comportar cerca de 20 mil itens atualmente à disposição. A loja ainda conta com espaço para confraternizações, cursos, degustações e bar.
– O mercado da cannabis é o que mais cresce no Brasil. São mais de 30 mil habeas corpus para plantio legalizado no Brasil. Eu compro muitos produtos do Rio de Janeiro e de São Paulo, e revendo para os próprios cariocas e paulistas com o valor dobrado, porque o site da loja é a referência para pessoas que procuram por marcas que às vezes estão bem mais próximas delas – comenta.
Assim como na concorrência, também na Bicho da Graxa um problema enfrentado no dia a dia é a desinformação e o preconceito por parte de um público que desconhece a natureza do negócio:
– Infelizmente ainda é comum que as pessoas venham achando que vão comprar maconha aqui. Claro que não. O pior preconceito que a gente pode sofrer é alguém achar que sou traficante. Tem vizinhos que não enxergam aqui uma loja que começou com um investimento de R$ 8 mil e hoje vale milhões. Acham que estou com as portas abertas, aqui no Bela Vista, vendendo maconha. Se fosse pra fazer isso eu estaria na beira da praia.
Para quem chegou primeiro, a ordem é se reinventar
Uma das primeiras lojas de Caxias do Sul a misturar tabacaria e head shop, a loja Garcia, que desde 2015 atende no Prataviera Shopping, também passa por um constante processo de expansão, mesmo com o aumento da concorrência. Instalada inicialmente num espaço de 13 metros quadrados, atualmente a head shop ocupa 80 metros quadrados dentro do shopping.
– Não era um sonho ter uma loja, era mais a necessidade de fazer um dinheiro, e vi em Caxias essa necessidade de uma loja que tivesse esse diferencial canábico, de acessórios de head shop mesmo. Mas quis incluir essa parte de tabacaria, pra ter uma segurança maior. Logo no começo era bem diferente do que é hoje. Era muito difícil encontrar fornecedores, tinha um em cada Estado, praticamente – comenta o proprietário, Pedro Afonso Bado Garcia.
O crescimento veio junto com novas ofertas de serviço, que ajudaram a loja a se manter entre as principais no segmento em Caxias. A mais recente foi agregar um setor de produtos voltados para a cultura nerd, trazendo consigo outra clientela. Para Garcia, saber se reinventar é fundamental para não ficar pra trás num mercado que atrai cada vez mais empreendedores:
– Quem não se reinventa acaba ficando para trás. Com o tempo fui mudando o design, para oferecer uma experiência diferente, e apostando em uma equipe cada vez mais instruída, para que o cliente possa ter uma breve aula sobre o assunto. Outro movimento foi este de investir em colecionáveis de cultura pop.
Projetando ainda mais crescimento, Garcia, que já recebeu convites para instalar a loja em outros centros comerciais de Caxias, considera para os próximos anos a possibilidade de abrir filiais em outras cidades, dentro ou fora do Estado.
Marca caxiense virou referência nacional
O caxiense Filipe Lamonatto, 42, ex-metalúrgico, descobriu como seria possível realizar um sonho de criança ao conhecer as habilidades para o trabalho em vidro de Danilo Gobbi, que viraria seu sócio na marca Oikos (família, em grego). Especializada em confeccionar piteiras e bongs cheias de estilo (os designs são criados pela namorada de Filipe, a tatuadora Roberta Seibert), a marca está presente em praticamente todas as head shops do sul e sudeste do Brasil.
– Nosso diferencial é o corpo a corpo com o cliente. Eu encho o carro de mercadorias e bato de porta em porta de Caxias até São Paulo, apresento o produto, o conceito da marca, e assim vou ganhando a confiança e aumentando a clientela. Chego a rodar 7 mil quilômetros por mês indo de tabacaria em tabacaria – revela.
Filipe não imaginava que a marca que criou quase que despretensiosamente teria um crescimento tão grande num espaço de tempo tão curto. São menos de cinco anos desde que lançou a Oikos na Expocannabis, no Uruguai.
– Certamente contribuiu muito o fato de que o Brasil começou a falar mais abertamente sobre o assunto, mas é igualmente importante a conscientização sobre redução de danos. Que se a pessoa fumar com uma piteira de vidro não vai deixar cheiro na mão dela, que vai filtrar e deixar a fumaça mais fria na hora que ela entrar na boca. Fora o fato de as pessoas gostarem de tudo o que é colecionável. Nós temos atualmente 90 modelos de piteiras de vidro e 20 modelos de bongs, além das camisetas e bonés – complementa.