
“Cada dia é uma vida”, diz a tatuagem no braço esquerdo de Nelson Motta, encoberta por algumas camadas de roupas na noite fria da última terça-feira (24) em Caxias do Sul. Além de fazer a primeira tattoo, aos 80 anos o jornalista, escritor, compositor e produtor musical não para de experimentar coisas novas: recentemente passou a atacar como DJ, graças ao convite da amiga Patrícia Parenza, caxiense idealizadora da balada Gudinaite, inspirada nas discotecas dos anos 1970 e 1980.
A ligação recente do carioca com Caxias do Sul, contudo, vai além. Desde fevereiro de 2023, mantém namoro à distância com a jornalista caxiense Patrícia Pontalti, radicada em Porto Alegre. O casal chegou junto para a entrevista que Motta concedeu ao Pioneiro uma hora antes de sua participação no talk show de comemoração pelos 30 anos da empresa Interface Comunicação e Eventos, no Hotel Intercity. Bem humorado e disposto, pediu ao entrevistador apenas para evitar chamá-lo de senhor:
— Essa é a única coisa que faz eu me sentir velho — brincou.
A seguir, confira os principais trechos da entrevista:
Pioneiro: Aos 80 anos, você ainda esbanja disposição para se desafiar a experimentar coisas novas e ainda iniciar um novo relacionamento. Existe uma receita para isso?
Nelson Motta: Não tenho dúvidas de que o amor é uma coisa incrível para a disposição e para a longevidade. Conheci a Pati cerca de um mês após sair de um casamento de cinco anos, e está sendo incrível, além de ajudar nesta transição de vida. Mas uma das chaves (para a longevidade) é que eu não reclamo de nada Se deu errado, se tem de fazer de novo, foda-se. Outra é que tenho uma disposição permanente para novidades. Sou muito novidadeiro. A Patrícia Parenza inventou de me convidar para fazer um set de DJ na festa dela, a Gudinaite, e eu, que tive cinco casas noturnas, mas nunca pensei em ser DJ, topei a ideia e deu tudo maravilhosamente certo. Quando achei que já tinha feito de tudo na música, depois de escrever letra, produzir, dirigir, e de pensar que já tinha vivido todas as alegrias que a música tinha para me dar, tinha mais uma reservada. Eu nunca soube dançar, mas adoro ver as pessoas dançando.
Você falou em entrevista recente que ficar velho é biológico, mas ficar antigo é cultural…
Acho que um fator influencia o outro. Se você se submete, se conforma em ficar antigo e começa a ficar nessa de “ai, como era bom naquele tempo”, você está mortinho.. Mas outra coisa é você se manter aberto às novidades….a minha idade cultural é 22 aos e 80 ao mesmo tempo, pela memória que eu tenho. Depois de tudo que eu já vivi, aos 80 anos, vou ter medo de quê? Já passei por dois assaltos, com arma na cabeça, passei por cirurgia na medula. A essa altura da vida, não tenho mais medo de nada. Esses tempos eu li numa matéria sobre o Chico Buarque que ele era um compositor “em idade avançada”. Fiquei puto! Ora, idoso ainda vá lá, mas chamar de idade avançada é sacanagem…

Qual década você escolheria se pudesse viver nela para sempre?
Para mim, talvez, seja a década de 1960. Não só porque eu era muito jovem, mas porque foi quando me apaixonei pela bossa nova. Eu nem ligava para música até então, mas quando apareceu João Gilberto, aquela movimentação toda em Copacabana, na casa das pessoas, Tom Jobim, Vinicius, Nara Leão…eu saía de uma boate e ia para outra, assistia Elis Regina, (Wilson) Simonal, em lugares de 30 metros quadrados. A bossa nova foi o meu primeiro amor. Apesar de desde 1964 nós já estarmos vivendo na ditadura, os primeiros anos ainda foram um pouco moles…depois, nos anos 1970, foi terrível e eu não quero reviver de jeito nenhum aquele medo e aquele terror. Mesmo assim, a produção artística era absurda. Também foi a fase do grande cinema, em que a gente ia ao Cinema Paissandu assistir filmes de Godard, Truffaut, Buñuel, para depois ficar conversando sobre os filmes por horas. Foi uma época incrível também por conta disso.
Mas os anos 1980 também foram sensacionais. Com o fim da censura, a liberdade dos surfistas, das gatas, as tatuagens, as drogas, os festivais, como o primeiro Rock in Rio. Era uma explosão de alegria, mesmo em meio a crises econômicas pavorosas e uma inflação em que as coisas subiam 50% ao mês. O salário chegava no fim do mês valendo metade do que valia no começo, mas ainda assim a gente curtia.
De alguma maneira, você acha que a sociedade retrocedeu nesta questão da liberdade individual?
Acho que retrocedeu, sim. Hoje há muito mais regras, tudo é muito mais restrito. O que deveria ter servido para ser uma grande libertação digital só serviu para deixar as pessoas muito mais caretas. Eu tenho netos de 20, 25 e 30 anos, que são maravilhosos, mas fico espantado em ver como a geração deles é caretinha, comportada. Não sei o que gerou isso. Os preconceitos também afloraram muito de uns tempos pra cá. Era para estarmos vivendo uma época de liberdade absoluta.

O conforto cada vez maior oferecido pela tecnologia está servindo também para afastar as pessoas?
Tem coisas boas também. Na minha época de garoto, se alguém me dissesse que haveria uma caixinha que me permitiria assistir o filme que eu quisesse, escutar a música que eu quisesse, eu logo mandaria essa pessoa para o hospício. Porque eu sabia que seria o paraíso. Ou até mesmo para escrever sem precisar usar papel, algo que eu sempre odiei, isso de ter de rabiscar, de escrever de novo...então, a chegada do digital foi uma maravilha. E eu morava em Nova Iorque, onde as coisas chegavam primeiro, e todo sábado a gente ia nas lojas e tinha uma novidade. Quando apareceu o Ipod, por exemplo, lembro muito bem o espanto que causou, porque de repente uma infinidade de músicas estava na palma da minha mão.
Outra maravilha inimaginável para a minha geração é você poder telefonar para quem você quiser, no mundo inteiro, de graça. Isso é um sonho, porque eu sempre tive amigos espalhados pelo mundo inteiro. Imagina agora, eu no Rio de Janeiro, namorando a Pati, que mora em Porto Alegre, e tendo de pagar para falar com ela por telefone. Ia falir!
E a inteligência artificial, que surge como a próxima grande revolução, como você vê?
Essa, sim, me deixa bem assustado. Porque está só no começo, e muito em breve vai chegar muito num ponto em que a gente não vai mais saber o que é uma coisa e o que é outra, como vai identificar o que é real ou não. Pensa em todas as revisões históricas que isso pode provocar. Eu fico bem cauteloso. Mas, ao mesmo tempo, tem algo de maravilhoso. Poder pegar uma música e pedir para a IA fazer uma letra no estilo Nelson Motta, e disso pode sair uma letra melhor do que eu mesmo faria (risos).
Você escreveu algumas biografias consagradas, mas já disse que não teria vontade de voltar a escrever este gênero. Existe, apesar disso, algum artista que você acha que ainda não tenha sido documentado à altura da sua importância?
Ultimamente tenho tido bastante vontade, mas ao mesmo tempo vou perdendo a vontade devido ao trabalho que daria, de escrever uma biografia do Joãosinho Trinta, (1933-2011) que pra mim foi um dos maiores artistas do Brasil no século 20. Ele era um artista plástico, diretor de ópera, tinha um conceito muito particular de revolução pela alegria, era transgressor, além de ter sido muito meu amigo. Já teve um filme sobre ele bem legal, com o Matheus Nachtergaele (Trinta, lançado em 2012), um documentário também (A Raça Síntese de Joãosinho Trinta, de 2009), mas acho que ainda é pouco. Se eu encontrar alguém pra me ajudar com as entrevistas, quem sabe ainda pode sair.
Ao mesmo tempo, estou feliz porque estão para sair obras baseadas em livros meus, como um filme de A Primavera do Dragão (livro biográfico sobre a juventude de Glauber Rocha, de 2011) e uma peça de teatro sobre Noites Tropicais (livro de memórias, de 2000). Então eu vou virar assunto logo ali na frente (risos).


