Saí de casa frustrado. Tomando banho, vendo as toxinas do meu corpo em redemoinho escorrendo ralo adentro, um estranho pensamento sacudiu meu córtex pré-frontal. Pasmo, entre a ira e a resignação, debrucei-me no azulejo gelado. A pressão d’água sobre os ombros me fez lembrar dos versos de Drummond.
Minha frustração? Quer saber? Em quase meio século de vida, acreditei piamente na força da realidade se sobrepondo à ficção. Decidi cursar Jornalismo porque sempre me interessei pelas histórias de vida que existem por detrás da fria estatística.
Ficção é criação e invenção. Por vezes, inspirada na realidade, trocando os nomes, descrevendo cidades inexistentes com o charme da metrópole de sempre. A realidade, contudo, não é invenção. O taxista ali do ponto da praça não foi inventado pelo poeta Dante, autor de A Divina Comédia. Realidade é o incêndio da Ferragem Caxiense e da Casa Minghelli, em 23 de novembro de 1952. A cena foi imortalizada por Mauro De Blanco, que inspirado pelo poeta, batizou-a de Inferno de Dante.
Drummond previu o peso da realidade sobre a ficção. Entre uma guerra e outra, publicou Sentimento do Mundo. Dentro da obra tinha um poema no meio do caminho: Os Ombros Suportam o Mundo. Aos 38 anos, inspirado pela dura realidade, vaticinou: “Chegou um tempo em que não adianta morrer / Chegou um tempo em que a vida é uma ordem / A vida apenas, sem mistificação”.
Segundo o dicionário, mistificação é: “ato ou efeito de enganar alguém, de induzi-lo a crer em uma mentira; ludíbrio, farsa, embuste”. Sob a égide drummondiana, poderíamos continuar a curtir a vida, cada um com suas dores e delícias, fruindo nas veias da ficção por meio de livros, filmes e toda sorte de criações artística que as mentes criativas pudessem realizar. Porém, contudo, todavia, a ficção avança sobre a realidade arrancando até as raízes do que um dia foi real.
O exemplo mais jocoso e embusteiro é a sentença propagada como mantra religioso: a Terra é plana. Até os robôs sabem que isso é ficção. Responde aí, IA: “A Terra não é plana. A forma do nosso planeta é, na verdade, um geoide, que é uma esfera levemente achatada nos polos e com pequenas irregularidades na superfície.”
A ficção tem marchado firme para comprovar a máxima: “insista na mentira que um dia cola”. Pesquisa por aí, enquanto a Sociedade Alternativa do Raul Seixas definha, avança pelas redes sociais a Sociedade da Terra Plana. Segundo pesquisa realizada pelo Datafolha, divulgada no ano passado, 10% dos entrevistados entre 16 e 24 anos creem que o planeta não é redondo.
Tô falando, a ficção está vencendo a guerra. E da pior forma. Se um dia eu escrever um livro cujo personagem é um jornalista que nas horas vagas vira assassino de aluguel para vender os órgãos para o Sudão em troca de barras de ouro, é capaz de me denunciarem: Bah! Tu viu que o Mugnol é criminoso?!
Pois é, caríssimos, a fake news já era. A onda do momento é surfar na Terra plana como metáfora da vida como ela não é.


