Dia desses quando caminhava pela praça Dante, por pouco não pisei em um pombo. Disse “um”, mas em poucos passos quase atropelei outro. Pois é, quem diria que, anos atrás, isso poderia acontecer, sendo que a essência das aves pertence mais ao céu do que à terra?
A relação entre pombos e humanos é antiga como os mitos que habitam as primeiras cidades. Há pelo menos cinco milênios, egípcios e mesopotâmicos os acolhiam, e os romanos, com seu engenho de guerra, faziam deles mensageiros do destino. Hoje, tachados de pragas, já foram sagrados — oráculos alados que cruzavam os céus levando mensagens ocultas no silêncio das asas.
No caso da ocorrência que compartilho com vocês, atropelar um pombo poderia ser considerado um acontecimento fatal, ainda mais quando se trata de uma ave distraída.
Atenta aos meus passos e disposta a olhar com outros olhos para os pombos que, sem perceber, eu já havia aprendido a ignorar, sigo a lição de que pequenos incidentes também podem nos “atropelar”. Confesso que o quase tropeço nas aves despertou mais empatia por elas. A pequena multidão de pombos se alimentando de grãos de milho me transportou às páginas do livro Os pombos, idealizado pelo padre Júlio Lancellotti, escrito por Blandina Franco, uma metáfora social dos marginalizados, dos invisíveis, dos rejeitados.
A impressão que tenho é de que os percalços daquela manhã despertaram conexões que me permitiram, também, reencontrar a história esquecida de um pombo-correio.
Cher Ami – “querido amigo” em francês — voou por mais de 40km em apenas 25 minutos e entregou uma mensagem a tempo de salvar 194 soldados. Um verdadeiro herói de guerra, ligado à paz e à fidelidade aos humanos.
Naquela manhã, senti a grandeza daqueles animais que representam resiliência, sobrevivendo a ambientes hostis.
Como não os comparar aos romanis, indígenas, quilombolas e outros povos que ocupam as frestas do sistema?
Afinal, quem somos nós? Nós também nos acumulamos, corremos atrás de farelos, construímos ninhos empilhados — prédios sobre prédios — como se quiséssemos tocar o céu sem sair do chão.
Depois daquele dia, quando olho nos olhos vermelhos de um pombo, lembro-me dos voos interrompidos pela violência dos centros urbanos. Vejo a fidelidade do voo de Cher Ami, e consigo tocar o começo de tudo. Não vejo peste nem praga. Vejo um poema aprisionado num peito pequeno, pulsando, querendo dizer alguma coisa que a cidade ainda não ouviu.