Durante setenta anos, Carlos e Jessy se amaram do jeito mais bonito que se possa imaginar. Até a véspera da morte dela, dormiram abraçados. Eu os via passeando pelas ruas da cidade de mãos dadas. Havia uma ternura permanente quando olhavam um para o outro. De personalidades opostas, souberam conciliar as diferenças, transformando o convívio em um renovado ato de respeito e admiração. Ele, de gestos e fala suaves. Ela, com opiniões fortes e incisivas sobre qualquer assunto. Adorava vê-los em meio aos apressados transeuntes da praça, pois seu caminhar mais lento dava um ritmo diferente ao que os circundava. E como conversavam! Passavam a impressão de terem se visto há muito, por tanto interesse manifesto em se ouvir reciprocamente. Era um discreto exercício de felicidade.
No dia em que fui abraçar meu amigo, agora órfão de sua amada, percebi um murmúrio em seus lábios, enquanto o rosto ficava próximo a ela. Estava lhe contando algo, como se ainda estivesse viva. Comovi-me profundamente. Ao me sentar, depois de lhe entregar meu consolo, ouvi-o dizer essa fala dilacerante. “É uma pena ter durado tão pouco!” Entendo o que me disse, pois para um sentimento desse tamanho a passagem dos anos não tem importância. Continuaram se querendo bem como se tivessem se conhecido (ou reconhecido) ontem. Fiquei ao seu lado por um tempo e o deixei só, entregue a uma dor impossível de alcançar. Pensei em sua história como o enredo para um romance, tal a raridade de um evento afetivo dessa magnitude. Foram afortunados, e essa separação significa não um fim, mas a grandeza estampada na beleza dos encontros eternos. Pois assim o são, a despeito da visita da “mais indesejada das gentes”, como lindamente o poeta Manuel Bandeira definiu a morte.
Passadas algumas semanas, sinto-me tocado por ter testemunhado um acontecimento dessa dimensão. E uso esta palavra para lhe dar o real sentido. Foi uma festa para a alma, uma pequena epifania. Nós, talvez, apenas conseguimos roçar de leve o que foi experimentado ao longo da vida por este admirável casal. Enxergar neles a potência de uma união tão intensa é um presente a ser guardado para sempre. Evito aqui a idealização, pois a realidade se encarrega de manchá-la com as oscilações do que sentimos. Mas observando meus amigos em perene encantamento, vejo-os como seres que tiveram as dores e dificuldades abrandadas por tanto querer.
Na tarde tranquila em que escrevo este texto, revejo este “milagre” através de um desfile de imagens repletas de ternura. E faço o relato acima buscando espalhar o máximo possível esse recorte poético que é um mundo em si. Termino com a lembrança de um verso do escritor argentino Jorge Luiz Borges: “Felizes os amantes e os amados. Felizes os felizes.”






