Passo a mão na cara e sinto os pontos que deixarão outra cicatriz na minha testa, além das linhas entrecruzadas do tempo. Penso: mais este ano e este Natal de um Brasil doente, de coringas, clowns e ciladas de toda ordem, bem combinam com um talho na cabeça e um médico de plantão remendando o meu couro sem vontade.
Mas dezembro é maluco, na ânsia do Feliz Natal. Tempo de ajeitar as tralhas do porão e olhar para os serviços do pátio. Daí que reservei um dia para acompanhar o trabalho hercúleo de poda de uma árvore. Depois de muitos anos de convivência, ela ameaçava a casa, quase chegando na altura do maior monumento do terreno: a antiga araucária de braços estendidos.
Foi quando, ao ajudar a tracionar uma corda atada a um galho monstro, coloquei-me ingenuamente na linha de tensão: um nó mal feito por mão de homem incauto, ou a própria corda – algo arrebentou e uma talha metálica veio direto na minha cachola, disparada pelo estilingue de David.
Em um segundo migrei para o Oriente e retornei para o chão de Monte Bérico, a meio metro dos peixes da fonte. Eles, que tudo sabem, anteviam o caso, desconfio. Abro os olhos e vejo um bom sangue. Aos poucos, cumpro o itinerário sinuoso até o espelho do banheiro, para ver quem era eu; depois ao carro, à cidade, ao hospital, à espera do boy de academia enfiado no jaleco branco com crachá de doutor – a quem não teve como dar a entender que diabos seria uma talha.
Deixo a emergência de granito novo e lustro do jeito que entrei: quase incógnito, chapéu, óculos escuros, camisa manchada, meio tonto, meia-sola. Os dias de dezembro voam. Os pontos já vão secando na testa. O tiro da talha, cinco centímetros mais ao centro do alvo, e seria Feliz Natal para sempre.
Não sei bem, há uma cicatriz fora e outra por dentro. E outras. Coisa que tomografia não detecte. Ritualizo as pequenas tragédias do cotidiano, em fuga ou esquizofrenia, por estratégia do viver. Penso em pactos não ditos do meu microcosmo selvagem: “homem, entrego meus dois braços verdes cobertos de musgos, mas levo um pote do teu sangue; deixo-te um sinal”.
Limpo os pingos secos pelo chão da casa. A agulha do toca-discos de um canal queimado traz versos esquecidos de Raul: “Fruto do mundo, somos os homens; pequenos girassóis, dos que mostram a cara.” Olho para o clarão aberto no pátio. Também uma cicatriz à espera do tempo. A velha araucária está ali, ainda mais vistosa. Pacto de uma vida. Eterna árvore de Natal. Não precisa enfeite. Feliz Natal!