Arrasto as sandálias gastas pela Júlio de Castilhos, três sóis na cabeça. Vou com essa cara de eterno turista na minha própria cidade; chapéu e óculos escuros – que sem eles estaria nu.
Passo por um homem que remexe coisas num container de lixo. Sem nada de interesse ou valor, ele vai fechar a tampa da caixa metálica; mas segura o movimento no ar, até que uma mulher que se aproxima no sentido contrário complete a ação de jogar algo no lixo.
Só então ele larga a tampa – e todos os atores anônimos da Júlio seguem seu curso de insignificâncias. Escondido nos óculos, medito por três segundos sobre o gesto de gentileza do catador, ali, avulso, sem carrinho, sacos ou cão amigo. Sinto seu espectro frustrado caminhando a três passos de mim.
Levo a mão no bolso direito e remexo a sorte. Estico o braço para trás, olhando sem olhar, com uma nota dobrada entre o indicador e o médio. O cara pega os dois pilas, discreto, como uma droga. “Deus te abençoe!”. Com esse Deus de mendigo sigo ao consultório da dentista para arrumar a mobília – como dizia um amigo de Lages.
Dia seguinte, chego no sinal fechado da Avenida Itália. Vejo um mendigo a rigor, barba de fiapo. Disfarço, embico o carro no lado oposto de onde ele faz a performance. Não tem como. Sou pior ator. “Aí camarada, qualquer moeda nos salva hoje.” A roleta do bolso desta vez pesca 5 pilas. Alcanço a nota pela janela do extraordinário Fiat Tipo 94.
Surpreso, o mendigo capricha: “thank you, thank you!”. Abre o sinal. Acelero minha máquina italiana do tempo pela boca da Sinimbu. O thank you do pedinte me arremessa de volta ao futuro do pretérito, no filme da memória de um mendigo aristocrata que conheci nos primórdios dos anos 1990, quando experimentei o mundo fora da pátria-amada.
Eu vivia num lugarejo chamado Grottaferrata, na órbita de Roma. Dia sim, dia não, chegava para o almoço um senhor da rua, decaído de algum castelo medieval. Se o macarrão não estava “al dente”, ele reclamava; ofendia-se até. Havia de ter um fio de bom azeite na pasta, queijo ralado, uma fatia de pão. E, “per piacere”, um copo de vinho.
Os nativos europeus da casa ficavam arrasados com a miséria do nosso lorde. Eu, terceiro-mundista, queria dar-lhe um pé quando exigia mais óleo de oliva, coisa que eu nem conhecia na infância e adolescência. Eu observava o fenômeno; imaginava que de volta ao futuro, também no Brasil, a nossa miséria poderia ser como aquela: entre a ficção e o realismo mágico. Naquela casa tinha um Fiat Tipo. André, André...