Durante os anos de criança, dois pôsteres quase gêmeos, colados em chapas de duratex, viajavam pelas paredes e pelo armário do quarto. Havia um Jesus clássico, colorido, de feições nórdicas, e um outro Jesus em preto e branco, impresso como se fosse um xerox borrado; uma reprodução do rosto do santo sudário.
Era um quarto coletivo, negociado entre palavras e socos com dois irmãos mais velhos – para o meu azar. Eu, André, o caçula; depois do Paulo, depois do João. Três apóstolos da Vila Kaiser, discutindo na mesa das últimas ceias de todos os dias. E, nas paredes do quarto, os dois Cristos, revezando-se entre recortes de Che Guevara, Rolling Stones e alguma revista proibida embaixo da cama.
O Jesus clássico, branco, tinha os olhos azuis como os meus. Tez branca, queixo afinado, cabelos longos, barba ruiva. Com o tempo eu fui desvendando o outro Jesus, cujos olhos não se mostravam. Sobre eles, via-se apenas o contorno circular do que seriam duas moedas, colocadas sobre as pálpebras do nosso Senhor, na tradição daquele tempo – contava-me Paulo, o mais velho, a quem fora dado o quadro do sudário por um amigo religioso, um bispo.
Em incontáveis noites e manhãs aqueles olhos metálicos encaravam-me. O maxilar quadrado, a barba espessa, a face robusta de um homem muito humano – aquele Jesus seria árabe, africano, mais preto do que branco. Era real, um documentário. Tal deus-pai, o Cristo monocromático vaticinava: “André, ganharás o pão com o suor do teu rosto e com uma câmera na mão”.
Foi assim que eu conheci um Jesus de cor, mulato – termo que não sei se devo usar, escrever. Um Jesus historicamente negado, a nós – degredados filhos de Eva. No lugar dele, sempre havia nas casas um Jesus ariano, adocicado, tangendo nossos olhares.
O Jesus negro da minha infância veio à tona quando abri o livro Dos traços aos trajetos – a Curitiba Negra entre os séculos XIX e XX (Fundação Cultural de Curitiba – 2019), em cujos escritos toma parte o olhar original e profundo da antropóloga e colega documentarista Geslline Braga, devotada às culturas tradicionais da capital paranaense.
O livro traz ensaios e belo acervo de fotos que desvelam o apagamento iconográfico da presença e dos traços da cultura negra em Curitiba, como aconteceu em maior ou menor medida em todas as regiões do Brasil. Nas primeiras páginas, com efeito, é reproduzida uma fotografia colorizada do nosso maior escritor: Machado de Assis, negro. Tal como eu imaginava aquele Cristo, na parede de madeira.


