Uma anciã curvada caminhava lentamente. Ia amparada pelo braço de um homem, também ele já demarcado pelas erosões do tempo (seria seu filho?). Dez metros atrás, seguia uma cadela vira-lata (ou seria um cão?), que também claudicava. E um pouco ainda depois, caminhava uma gata malhada (seria um gato?), como se fosse a distraída tutora de todos que compunham aquela cena.
Assim a luz do sol esculpia aquelas figuras de rara beleza na calçada da Matteo Gianella, em Caxias do Sul. O tráfego estúpido, a fumaça dos ônibus, nada interferia naquele ritual, naquela aquarela.
Agora, na cama, penso se essa imagem – de tão bela – realmente existiu ou se a imaginei um dia, pela cidade. Acho que foi verdade, porque o centro gerador de toda aquela aventura humana – a anciã, o homem, a cachorra, a gata, o tempo – era (e ainda é) uma velha casa (seria marrom?), herdeira da popular arquitetura de madeira da imigração italiana.
Por muitos anos, desde que migrei para os lados da Linha 40 e depois Monte Bérico, aquela casinha foi um marco quase diário do meu itinerário à cidade. Nela o meu olhar repousava, em fuga da nossa urbe dura e sisuda. Eu mergulhava no lago de um vilarejo de montanha, pintado na parede do singelo avarandado da casa.
A casa de pinheiro, a anciã, os bichos, o pátio, o jardim. Tanto tempo passou, tanto passei, sem jamais entrar pelo portão de tela, perguntar pela dona, ouvir suas histórias, as memórias e os afetos da casa. Era um mundo intocável. Uma única vez aproximei-me com uma equipe de filmagem, na companhia de um artista plástico, que então observava as veladuras cromáticas das paredes da casa. A gata olhando pela janela.
Na semana passada, de passagem por ali, recebi outro golpe da cidade: o terreno da casa foi terraplanado. Virou mais um estacionamento, chão socado de brita. A casinha, ali, agora exposta aos passantes, vazia, dessacralizada. Tive a impressão de ver uma gata vagando no fundo do terreno.
Filho de carpinteiro, sonhador da madeira, queria sequestrar a casinha já condenada. Com as minhas ferramentas, tirar-lhe todas as tábuas, as guarnições, os caibros, os tirantes. Arrancar-lhe os pregos, com delicadeza. Então remontá-la em um museu.
Não mais como casa. Mas em formas e volumes abstratos; uma escultura em tábuas de macho e fêmea, caixilhos de janelas delirantes, tendo ao centro a pintura do vilarejo. Para quando eu fosse bem velho, arqueado, que eu pudesse ainda vê-la. Atrás de mim o cão; e uma gata companheira.



