Aurora enviou uma mensagem pelo celular com uma pergunta importante e inadiável: “pai, foi o bebemoinho que quebrou o nariz da esfinge?”. A questão teria surgido quando ela viu em algum desenho ou história ilustrada a icônica imagem da Esfinge de Gizé, cuja ausência do nariz é apenas um dos milenares mistérios do Egito.
“Bebemoinho”, que quer dizer redemoinho, é uma das muitas palavras que a menina de quatro anos vai perdendo ou corrigindo no rastro da aquisição do vocabulário. O golpe maior foi quando ela deixou de pronunciar “pixú”, percebendo que dizer “peixe” a tiraria definitivamente do estágio principiante da fala, deixando-a mais igual para com os adultos.
Todo caso, entre novas expressões e conceitos de cada dia – inclusive um pequeno acervo de palavras em Talian, o idioma da imigração –, ainda tento manter a farsa do “bebemoinho”, como uma das últimas arqueologias da fala da menina, a aurora da linguagem de Aurora. É uma pena deixar de ouvir tantas palavras inventadas pela imaginação da infância, feitas de uma arquitetura afetiva. Mas a construção da linguagem é condição do aprendizado, do crescer. Dos indivíduos, das nações.
Nossas liberdade e grandeza passam também pela riqueza da língua. Ou, de nossas múltiplas línguas. O Brasil, que ainda não conseguiu superar a chaga histórica do analfabetismo, poderia ser uma nação de multilíngue. Por aqui ainda soam ecos de aproximadamente 130 línguas indígenas e 30 idiomas de imigração. Temos ainda todo acervo linguístico de África que resistiu e incorporou-se ao nosso Português, sem que saibamos ao certo de quais reinos ou tradições vêm “cafuné” ou “cafundó”.
O Brasil contemporâneo, ao invés de florescer em seu multilinguismo, reforça a longa tradição de oprimir seus falares, as línguas de seus povos oprimidos, esquecidos. Queimamos nossos biomas, matamos a maior das megadiversidades ambientais do planeta; o que não faríamos com as nossas diversidades etnográficas? Precisamos interromper esta automutilação nacional, feito romeiros fanáticos de mil igrejas picaretas, do Pampa à Amazônia.
Mas a quadra histórica não é nada boa. E talvez nossas caminhadas de linguagem e de civilização jamais se completem em suas potências originais. Aí estão as multidões e certas elites poliglotas, espelhando-se no líder máximo da nação, que usa não mais que um mirrado naipe de vocábulos repetidos em seu discurso, onde quase nunca falta um dos mais odiosos jargões ou muletas da Língua Portuguesa: “no que tange...”.