Você, leitor, é uma pessoa “de bem” – para usar um termo em moda no moralismo nacional. Cidadão benemérito, querido onde vive, bom consumidor e viajante. Aí, em excursão solitária pelos States, você tem um tilt, uma crise mental, talvez uma garrafa de uísque, algo fora da curva.
Em 15 minutos de transe, você – um cara legal – quebrou lâmpadas do hotel e teria também despejado a carga do extintor de incêndio em cima de pessoas, segundo o relato oficial de dois policiais que chegaram na viatura do xerife e te algemaram no hall do paradouro, em uma típica cena dos Simpsons na imaginária Springfield.
Na vida real, você acorda em uma fria e metálica prisão de um vilarejo da Geórgia. Passam-se dias, semanas, você não sabe o que exatamente lhe pesa contra, além dos danos ao patrimônio alheio; não pode telefonar para casa, não sabe nada.
Essa história está se passando com Marino Marcon, de 68 anos, desde outubro. Marino é de San Fior, perto de Treviso, Itália, mas poderia viver aqui em Monte Bérico ou ali em Nova Milano, pelo modo similar de estar no mundo, com sotaque vêneto. O conheci em uma viagem pela Argentina, de contornos fellinianos: vinte e poucos viajantes, pilotando singelas Vespas, atravessavam lentamente a Patagônia.
Lá estava Marino, talvez o mais velho – sereno e sensato – entre o grupo de italianos, que discutiam até 400 quilômetros por dia. Com um amigo daqui, que ia com sua Vespa vermelha, entrei naquela jornada como apoio da expedição, ao volante de uma velha Defender abarrotada de peças, ferramentas e formas de esplêndido queijo Parmigiano-Reggiano.
Mas, voltando a Marino: ficou na memória e nas fitas de vídeo o breve depoimento que gravei também com ele, quando o insólito cortejo alcançava a Terra do Fogo. Ele não se dizia um fanático pelas clássicas motonetas; a Vespa era para ele um meio, não um fim, que lhe possibilitava viajar de um modo particular. E quando os demais “vespistas” se ultrapassavam ou discursavam sobre horários e roteiros, Marino seguia solene e tranquilo na sua Vespa preto-fosco.
Por isso ninguém entende o que se passou com Marino em terras ianques. Se fosse aqui, nesta América de sangue latino, o ocorrido da Geórgia talvez lhe rendesse uns safanões da polícia, algum dinheiro, noves-fora e... Arrivederci!. Mas sendo lá, na América de Trumps & tiras saídos dos enlatados do cinema e da tevê, a história é outra: sátira US made. Torcemos que, até o Natal, Marino seja orgulhosamente expulso da nação que diz amar a Liberdade.