Edith Gubert me olhou dentro dos olhos e começou a falar; pouco importava a câmera ligada, bem perto, na cozinha da casa de madeira: “quando foi pelas nove horas da manhã, a firma explodiu. Só não caiu a parede onde tinha a Santa Bárbara.”
Foi assim que dei àquela narrativa um título mais estético do que histórico: Aos olhos de Santa Bárbara – rendendo-me à presença simbólica da mártir cristã que é invocada contra os raios e as tempestades, os perigos do fogo e das explosões. Até aquele momento do encontro com Edith, os depoimentos de dois homens da mesma família, fazendo referências à santa da parede, ainda não me comoviam o bastante.
Mas ali, diante da irmã de uma das vítimas da explosão de 1943, a memória da Santa Bárbara da Metalúrgica Gazola vinha de uma mulher – era uma história feminina, de mulheres pouco vistas nas narrativas da cidade e de um país bustificado por uma história oficial, masculina.
Por que o episódio da morte de jovens operárias de uma fábrica de material bélico na II Guerra Mundial, no sul do Brasil, teria sido confinado em um monumento do pátio de uma fábrica, sem nunca demarcar o horizonte urbano da cidade? Onde estariam as fotografias, jamais vistas, do trágico sítio, dos escombros, dos funerais das jovens? – em uma cidade amplamente registrada por fotógrafos ao longo do século 20.
Nessa minha vida de viver pedaços da vida dos outros, por magia do meu ofício, é necessário também esquecer, como lembrar, de coisas que vejo, ouço e sinto, ao longo dos meus trabalhos. Mas as palavras de Edith ficaram em outra instância da memória, uma espécie de relevo em basalto. “A Odila foi a última a ser retirada dos escombros; ela arrumou um lugarzinho onde conseguiu colocar uma mão pra fora”.
Em outra casa de mágicas madeiras, encontrei Dozolina Formolo Roglio e seus muitos gatos, irmã de Graciema Formolo, outra das jovens vítimas da explosão. “Eu estava passando roupa quando ouvi o estouro, larguei e corri lá em cima; eu e meu pai fomos os primeiros a chegar na Gazola. Reconheci a minha irmã pelo vestido, um vestido marrom com umas pontinhas brancas. Era inverno”.
O tempo da cidade, das casas, das pessoas, foi passando. O mundo mágico de Edith, de Dozolina, se encarregou de cicatrizar um pouco o que nem a realidade nem a história nunca explicaram naquela explosão: “Sonhei que ela me apareceu, eu estava lavando a louça; ela estava toda molhada. O que aconteceu, Graciema? Ela disse: vês, é de tanto tu chorar, olha o estado que eu estou. Depois disso, não chorei mais.”
Opinião
André Costantin: Olhos de Santa Bárbara (2)
Era uma história feminina, de mulheres pouco vistas nas narrativas da cidade e de um país bustificado por uma história oficial, masculina

André Costantin
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