Vou continuar. É a frase que leio de Samuel Becket. Leio e me deparo com o dia que se inicia outra vez. Dias que se sucedem numa velocidade assustadora. É sempre segunda. A vida como uma máquina que nos esmaga dia após dia. Eis-nos aqui, bem no meio da moeção diária produzida por nós mesmos. Vou continuar, invoco Becket. Apesar dos cansaços, de ser ainda junho, mas parecer dezembro, de torcermos para que a semana acabe outra vez na ilusão de descansar no fim de semana, de nos informarmos sobre guerras e conflitos, como esse de agora entre Israel e Irã. Termos medo, mas precisamos reconhecer que guerreamos dentro de nós. E somos um inimigo implacável quando decidimos nos machucar.
Continuar como verbo de prolongamento. Em Portugal não se diz bom dia, se diz boa continuação. Segue-se apesar de. Talvez apesar de nós mesmos embora estejamos a pesar sobre nossos ombros quem somos. E às vezes somos terríveis, tinhosos em nossas opiniões, maldosos em nossos comentários e julgamentos e rígidos em nossas certezas. Claro que, por outro lado, também há dias em que quase perdermos a esperança: as pessoas não respeitam o sinal de trânsito, os índices de violência só aumentam, os comentários nas redes sociais vociferam ódio e percebemos no outro o ruim de nós. Nos calamos. Sentir vergonha de si mesmo, nestes casos, é fundamental para se viver de modo civilizado.
Continuemos. Às vezes precisamos nos desonerar de nossas próprias escolhas. Abdicar de quem imaginamos que seríamos, porque essa ilusão de si nos alimenta de uma certa arrogância e autoritarismo. E daí nos tornamos uma falácia ambulante. Nosso discurso de amor e fé é soterrado pelas atitudes desconcertantes e conflituosas que expressamos. Desejamos a paz e semeamos a discórdia. A frase não é minha, é clichê, mas vai no alvo de nossa tirania. Porque toda tragédia é criada por pessoas que se recusam a desistir.
Mas continuemos um pouco mais. Somos os únicos responsáveis pelo caos que vivemos. Isso é do Freud. Pois sim, construímos tijolo a tijolo a vida que temos, as relações em que estamos, a solidão que habitamos, os desencontros que produzimos. Queremos ter perto de nós pessoas bem resolvidas, mas nós somos o inferno. Queremos viver no princípio do prazer custe o que custar e nem nos damos conta do quanto somos crianças ainda.
Releio Becket. Continuar é fundamental, porque em algum momento precisamos crescer. Abandonar velhas ideias, atitudes e deixar o que está atrás para trás. Continuar.