Alguém falou sobre as costas. De costas escutei e pensei, sim. Nunca vemos as nossas próprias costas. Há uma vida que acontece sem que vejamos jamais. Mesmo que nos viremos para ver o que estava atrás, o atrás continuará sem ser visto. É estranho se dar conta de que são os outros que veem nossas costas. As costas são um pedaço do nosso corpo que nunca conseguiremos visitar. A menos que alguém nos fotografe, mas, mesmo assim, nos vemos apenas pelo olhar do outro. Talvez por isso alguns têm medo do que os outros dizem pelas costas. Falar por trás. Afinal, precisamos confiar naqueles que nos observam. Ou não. É mais estranho ainda se dar conta de que somos uma terra distante de nós mesmos. Muitas partes do nosso corpo não conseguimos ver. São lugares jamais vistos. Poucas coisas sei sobre minhas costas, pois nem minhas mãos conseguem tocá-la por completo. O que sei de mim dependo do toque do outro.
Assim, estava de costas para um punhado de pessoas sentadas que escutavam a palestra silenciosamente. Fiquei pensando no que elas viam de mim, que estava em pé e de costas para elas. Não era por falta de educação, o ambiente estava lotado e só havia possibilidade de ficar de pé. Escutava a palestra e porque a lombar doía o pensamento flutuava. As costas carregam uma certa ausência, embora consigam sentir o olhar invasor. Em geografia, costa é a linha que separa o mar da terra. É o limite entre o oceano e o continente. É um mistério, quase um paradoxo, afinal é um limite que não afunda. A primeira vez que vi o mar tive medo. Não conseguia compreender como é que a água não invadia a praia. Como ela podia vir somente até ali e não avançar?
Temos nossas costas, encostas, limites. Temos lugares inacessíveis em nós, para além do próprio inconsciente. E conscientemente, nos deparamos com partes de nosso corpo que jamais tocaremos. Partes que somente serão tocadas pelos outros. Eis aí o aprendizado da confiança e da entrega. Mesmo que este outro seja um anônimo que vê nossas costas sem se dar conta que jamais verá a sua própria. Afinal, há um mundo entre nós, desconhecido. E se ficarmos de costas um para o outro, teremos entre nós o mais inóspito dos lugares do mundo. Um lugar em que não há linguagem, não há comunicação, muito menos a possibilidade de diálogo. Nada se vê, se toca ou se percebe. É o não lugar, que embora exista é inacessível. Penso na loucura que seria se os continentes ficassem costa a costa. Um sem saber do outro. Talvez por isso a costa seja a linha entre a terra e o mar, porque é preciso que a água banhe aquelas beiradas de areia, umedeça a fronteira para que o encontro seja possível.
Somos nós, assim, esta parte que é molhada pelo outro e que sem isso vira deserto. Lembro de Sartre, toda relação com o outro é um eu e você. Todo ser-com-o-outro é um ser-para-o-outro. É a necessidade do encontro e do reconhecimento. A escrita é um mar que avança sobre as costas de quem lê. E a página, encharcada, diz: não estou mais de costas.