
Indícios de prova recolhidos ao longo de 2024 pelo Ministério Público apontam que o ex-diretor da Associação de Proteção e Assistência ao Condenado (Apac) de Passo Fundo, Vinícius Toazza, e ao menos um funcionário que atuava no espaço acobertariam fugas de detentos do local. Os detalhes estão na denúncia entregue pelo MP ao Judiciário em dezembro, a qual a reportagem da RBS TV e GZH Passo Fundo teve acesso.
A Apac consiste em um sistema de encarceramento diferente do tradicional: a proposta é que os apenados tenham corresponsabilidade pela sua recuperação em um ambiente com acesso à profissionalização, educação, saúde e religião. Em Passo Fundo, a entidade civil de direito privado foi inaugurado em março de 2023.
O último desdobramento foi em 11 de abril, quando o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público, prendeu seis suspeitos de envolvimento criminoso com a Apac. Uma sétima recebeu medidas cautelares.
A investigação — que recebeu o nome de Operação Papillon — começou depois da descoberta de uma série de fugas de detentos da Apac de Passo Fundo. Os primeiros a fugir, que se tem conhecimento, foram os apenados Eduardo Abreu Nunes e Mateus de Almeida Riva, em setembro de 2023.
Com antecedentes por crimes como homicídio, roubo a veículo e relação com uma organização criminosa do Vale dos Sinos, à época os dois ficaram menos de 30 dias na instituição. Em outubro daquele ano, o apenado Dionatan Bentos dos Santos, que também deveria estar na Apac, foi preso dentro de uma boate na Rua Independência, centro de Passo Fundo. Ele usava uma tornozeleira eletrônica coberta com papel alumínio.
— O que é apurado é que vários desses apenados que se encontravam ali não preenchiam os requisitos para sequer haverem ingressado na Apac. Além disso, após entrar, eles não eram submetidos ao regime previsto de disciplina e cumprimento de uma série de regras. E as faltas por eles cometidas eram acobertadas. Mesmo após as fugas, segundo foi apurado na investigação, houve uma tentativa de acobertamento daquilo que acontecia — resumiu o promotor à frente da operação, Diego Pessi.
Veja os detalhes acessados com exclusividade pela reportagem da RBS TV e GZH Passo Fundo a seguir.
Fugas seriam acobertadas
Com os celulares apreendidos durante a operação, o MP encontrou, através de extração de dados, mensagens que reforçam a suspeita de que as fugas eram conhecidas e acobertadas.
Na noite de 13 de setembro de 2023, quando Eduardo e Mateus fugiram da Apac, o então diretor da instituição, Vinícius Toazza, teria sido alertado sobre o caso através de uma mensagem supostamente enviada por Wagner Morais Rodrigues, apenado na instituição que não poderia ter celular (veja abaixo).
Na ocasião Vinícius teria dito que, se Eduardo e Mateus voltassem, ele resolveria a situação. Diria que o portão ficou aberto e após a dupla discutir, saíram da casa.
Naquele dia, a reportagem da RBS TV e GZH Passo Fundo buscou Toazza para saber sobre a fuga. Por mensagem de voz, ele deu outra versão: disse que as regras da Apac eram muito rígidas, os apenados não conseguiram se adaptar e fugiram por medo de ter de voltar ao sistema tradicional (veja a transcrição do áudio enviado à reportagem no dia seguinte a fuga abaixo).
As regras são muito rígidas na Apac. Eles não conseguiram se adaptar, não conseguiram se enquadrar. Então o medo de eles poderem voltar para o sistema tradicional fez com que fugissem. (...) Eles não conseguiram se adaptar, de não ter celular, de não ter, enfim, outras coisas que normalmente têm nos presídios, ilegalmente, mas têm. Acabaram não conseguindo se adaptar a essa realidade e isso fez com que eles evadissem. Deixaram o local sem agressão nenhuma
VINÍCIUS TOAZZA
ex-diretor da Apac Passo Fundo, em áudio enviado à reportagem da RBS TV e GZH Passo Fundo, em setembro de 2023.
Já sobre a fuga de Dionatan, descoberta em outubro de 2023, a 6ª Promotoria Criminal de Passo Fundo disse ao Gaeco que não foi informada pela direção da Apac "passados quase dois meses" da saída irregular.
Em outra ocasião, registrada em 24 de julho de 2023, um apenado da Apac envia uma mensagem no grupo "OsGuriDaPaC" informando que não está presente por motivos pessoais. Toazza teria demonstrado saber da ausência e responde: "O que precisar estou aqui" (veja abaixo).
Comunicação entre a direção e os apenados

Em maio de 2024, o Ministério Público cumpriu mandados de busca e apreensão no Presídio de Erechim, onde 11 celulares foram recolhidos pelo Gaeco. A extração de dados dos aparelhos mostrou a existência de um grupo de WhatsApp chamado "OsGurisDaPaC". Entre os integrantes estariam Vinícius e os apenados.
Foi neste grupo que, apontou a investigação, Toazza alertou sobre a chegada do superintendente na unidade em 28 de fevereiro de 2023. Na mensagem, ordenou que os celulares fossem escondidos.
Sobre isso, o promotor Diego Pessi falou:
— A investigação aponta a existência e a utilização desse grupo, inclusive para que se burlasse a fiscalização que deveria ocorrer na Apac, como avisar para que se escondessem aparelhos de celular. Uma série de irregularidades foram verificadas e, entre elas, essa utilização indevida de aparelhos de telefone.
O grupo "OsGuriDaPaC" também serviria para circular informações sobre o que acontecia em penitenciárias. Em 2023, quando detentos planejavam uma greve geral no Estado, Toazza teria pedido sobre a adesão. "Os nossos aderiram à greve?", questionou no grupo.
Entre as conversas presentes nos celulares, o Gaeco encontrou o que seria uma troca de mensagens entre Vinicius e o apenado Wagner no dia 15 de dezembro de 2023. O apenado reclama de uma decisão de um juiz e afirma que sua vontade era matá-lo.
Celulares nos presídios
A investigação do MP também apontou que o esquema envolveria a entrega de celulares para apenados que estavam em presídios da região. Conforme a denúncia do MP, um funcionário da Apac identificado como William Soares Rangel seria o responsável por essa função.
— Um representante da Apac se apresentava como uma espécie de delegado do Poder Judiciário, do Ministério Público, e assim tinha acesso ao anterior estabelecimento prisional, onde mantinha contato com os apenados e repassava aparelhos de telefone e celular — relatou o promotor.
A apuração do Gaeco identificou que, em 15 de fevereiro de 2024, Rangel teria ido até o Presídio de Erechim, onde teria se apresentado como funcionário da Apac e informado que precisaria realizar entrevista com presos candidatos a ingressar na instituição. Segundo um relato presente na denúncia, William teria dito que havia cobrança do MP e do Judiciário para que novos apenados fossem selecionados.

Após a conversa com um preso, que teria sido revistado antes de entrar na sala, houve novamente fiscalização e, desta vez, os agentes encontraram um celular com sete chips. O Ministério Público, então, cumpriu mandado de busca e apreensão na casa de William, onde encontrou sete celulares, outros eletrônicos e documentos.
Em meio aos documentos havia um contrato de empréstimo entre Vinicius e William com valor de quase R$ 80 mil. Outro papel é uma lista com nomes de apenados candidatos a entrarem na Apac.
A extração de dados de um dos celulares apreendidos mostrou uma conversa que seria de William com uma pessoa cujo contato foi salvo como "mcc". Este último cobra uma resposta do "Mestre", codinome supostamente usado por Toazza, segundo o MP. William responde que o "Mestre" responderia sobre o assunto pessoalmente a ele quando se encontrassem na Apac. "É que mensagem fica como prova né. Por isso ele te ligou aquele dia", teria escrito.
Em outra conversa que seria de William e uma mulher, ele relata que no dia 17 de março de 2024 teria sido demitido da Apac e, por isso, precisava de auxílio financeiro para pagar contas. Na conversa, Rangel teria relatado que foi demitido como uma forma de "queima de arquivo" para compensar erros antigos aos quais supostamente atribuiu ao então diretor.
A denúncia do MP
Depois das apreensões de celulares e documentos nas ações de 2024, o Ministério Público encaminhou a denúncia à Justiça em dezembro do ano passado e solicitou a prisão preventiva dos seguintes investigados:
- Vinícius Toazza, ex-diretor da Apac
- William Soares Rangel, ex-funcionário da Apac
- Maria Isabel Soares, mãe de Rangel
- Mateus de Almeida Riva, ex-apenado da Apac e hoje preso
- Eduardo Abreu Nunes, ex-apenado da Apac e hoje preso
- Dionatan Bento dos Santos, ex-apenado da Apac e hoje preso
- Wagner Morais Rodrigues, ex-apenado da Apac e hoje preso.
O Judiciário aceitou o pedido no dia 10 de abril de 2025. Todos tiveram as prisões decretadas, exceto a mãe de William, que recebeu medidas cautelares. As ordens foram cumpridas no dia seguinte. William e Vinicius foram presos, enquanto os ex-apenados já estavam cumprindo penas em casas prisionais do Estado.
Cerca de 10 dias após as prisões, tanto William quanto Vinícius foram liberados através de habeas corpus solicitados por seus advogados José Paulo Schneider e Vicente Teston, respectivamente. Os advogados relataram a falta de contemporaneidade entre as ações do MP ao longo de 2024 e as prisões já no segundo trimestre de 2025. A Justiça acatou os pedidos e os dois respondem o processo em liberdade.

O que dizem as defesas
Em entrevista à RBS TV, José Paulo Schneider, que defende William e sua mãe, relatou que ainda colhe informações e provas para defesa. A defesa de cada um será feita de formas diferentes.
— Em relação a Maria Isabel, estamos juntando documentos para comprovar a licitude das movimentações financeiras que o Ministério Público apontou como ilícitas. Já temos toda a documentação e, em momento oportuno, vamos juntar para demonstrar a licitude dessas movimentações — afirmou Schneider.
— Em relação a William, o mérito já é um pouco mais robusto e vamos reservar ao momento da instrução. O que é importante destacar desde já é que ele apresenta um histórico de vício em apostas que vai interferir diretamente no motivo dessa movimentação e condutas que ele tomou — completou o advogado.
Procurada, a defesa de Vinícius Toazza, representada pelo advogado Vicente Teston, apontou que busca preservar o cliente e vai se manifestar nos autos do processo.