
Foi em 2003 que o procurador da República, Osmar Veronese, assinou o seu primeiro Termo de Ajuste de Conduta (TAC) com a América Latina Logística (ALL), depois incorporada à Rumo, para buscar soluções às ferrovias gaúchas.
De lá para cá, a missão virou desatar o cada vez mais emaranhado imbróglio judicial envolvendo o assunto que, hoje, inclui mais de 1,2 mil quilômetros de trilhos inoperantes pela enchente do ano passado — e pelo menos 2 mil km inutilizados desde antes da tragédia climática.
Em entrevista à coluna, Veronese detalhou o trabalho do Ministério Público Federal (MPF) que já se prolonga por 22 anos para manter o funcionamento dos trilhos no território gaúcho. Baseado em Santo Ângelo, ele solicitou esclarecimentos sobre a proposta encaminhada pela Rumo ao governo federal para devolver parte das ferrovias do Rio Grande do Sul.
O pedido integra uma série de tentativas de diálogo de uma ação coordenada do MPF, criada em 2020, que inclui canais de diálogo com o governo federal, empresas envolvidas e tentativas de contabilizar desde a extensão das faixas de domínio até os prejuízos do abandono.
O objetivo do MPF, segundo ele, é fazer um acerto de contas do passado e um projeto robusto de futuro, um processo que o procurador detalhou em 1h de conversa na última semana. Confira trechos a seguir.
Entrevista com Osmar Veronese, procurador do Ministério Público Federal (MPF)
GZH: a sua relação com as ferrovias gaúchas é antiga. Como começou?
Veronese: As ferrovias são parte da minha história desde a infância, quando acompanhava os trens em Viadutos (cidade a 110 quilômetros de Passo Fundo). Especialmente no Ministério Público, começamos provocados por agentes políticos, empresários e pessoas da região que tinham amor à memória dos trens e entendiam que não podemos deixar ir todo esse patrimônio histórico-cultural e também modal de transporte.
Em 2003 fizemos uma grande audiência pública em Santo Ângelo e dali saiu um TAC buscando retomar o transporte. Em 2009, eu executei esse TAC, que não foi cumprido pela ALL. Mais tarde, a Rumo acabou adquirindo a ALL e, nesse meio tempo, tentamos voltar a discutir a Malha Sul.
A partir de 2013 passei a participar do GT (grupo de trabalho) de Transportes, junto à 3ª Câmara do MPF, da Procuradoria-Geral da República, em Brasília, que foi onde comecei a discutir mais a fundo a questão das ferrovias. Em 2020, criamos a Ação Coordenada Malha Sul, que foi quando as conversas com a Rumo deram uma guinada, mas murcharam com o início da pandemia.
Então tenho acompanhado todo o debate do grande projeto nacional das ferrovias, que, nos últimos anos, tem ficado mais para o centro do país, do sudeste ao norte, e a Malha Sul, em especial no RS, restou um pouco esquecida nesse processo.
GZH: como o senhor vê a situação das ferrovias nesses últimos anos?
V: Sem dúvida, o que temos percebido é o encolhimento da Rumo e a incapacidade do poder público e da sociedade em dizer claramente o que se quer da Malha Sul e o que fazer com esse modal. No sul do Brasil, temos ferrovias que passam no meio de regiões produtivas, com boa distância aos portos e todas as vantagens em relação a outros modais, especialmente do transporte rodoviário, mas que acabou sendo abandonada em um processo histórico que, ao meu ver, é erradíssimo enquanto sociedade e poder público.
Estamos a um ano e nove meses do fim da concessão e ainda não fomos capazes de construir uma alternativa clara em relação ao contrato da Malha Sul, que é a maior malha ferroviária do país. Dentro do contrato de concessão, conseguimos abandonar, depois que mais de 100 anos de prestação de serviço, a única ligação internacional via trem, com a Argentina, que temos no sul do Brasil, em Uruguaiana.
Abandonamos, inclusive, o porto seco onde trabalhavam mais de 350 pessoas. Agora, rompemos a nossa ligação nacional com Santa Catarina e o resto do país em função da enchente. Todos os outros modais se rearticularam, investiram e estão funcionando, a exemplo do Aeroporto de Porto Alegre e das rodovias, ainda que com alguma dificuldade, mas todas recuperadas e andando. A ferrovia, infelizmente, está rompida e quando se fala com o poder público é sempre aquele "pois é, vamos ver".
Isso mostra um pouco mais do descaso em relação à ferrovia, que já vem de 30 anos de descumprimento de contrato de concessão. Então estamos profundamente indignados, mas não surpresos, porque é um processo contínuo de descaso com toda a sociedade.

GZH: quais itens do contrato de concessão foram descumpridos?
V: O contrato previa a continuidade e a prestação do serviço a preços módicos, mas temos evidências de que, toda a vez que a concessionária não queria transportar para Santa Rosa, por exemplo, colocava um preço mais alto que o cobrado para levar pelas rodovias. A ferrovia sempre funcionou com 30% a menos do custo de transporte rodoviário, por isso era competitivo levar adiante. Mas se chega alguém que cobra 50% a mais que o cobrado pelo caminhão, o negócio se inviabiliza.
Ou seja, foram criadas e replicadas estratégias para não cumprir aquele contrato de concessão assinado em 1997. Talvez o (descumprimento) mais gritante é abandonar trechos dentro do contrato de concessão, que foi algo inexplicável.
Ou seja, as concessões existem para melhorar a prestação do serviço, mas talvez ninguém tenha recebido a melhor prestação de serviço nesses 30 anos. Então o contrato foi todo descumprido, e é isso que precisamos avaliar: primeiro fazer um bom contrato, ter boas garantias e acertar esse passado, que é muito caro.
Começamos a levantar sobre a qualidade dos trilhos e a infraestrutura, mas a verdade é que o imbróglio jurídico é tão grande e tão grave que não sabemos exatamente qual é o valor a ser pago numa eventual devolução de trechos da Malha Sul.
GZH: o que deve ser feito agora?
V: Na ação coordenada, ordenamos a atuação do MPF dos colegas do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná e estabelecemos parâmetros claros. O primeiro é acertar o passado — ou seja, há uma série de situações que são gravíssimas, como abandonos de trechos e destruição do patrimônio. Queremos quantificar tudo isso e colocar na mesa: qual o custo de tudo isso? E, sobretudo, qual o custo em termos de degradação do asfalto, por exemplo, em função de não ativar a ferrovia no sul do país, como o contrato de concessão previa?
Além disso, entendemos que todo o passivo — ou seja, as multas, penalidades e a própria outorga em relação à ferrovia — deve ser aplicado na própria ferrovia e não ser destinado a outro fundo do Tesouro pois a ferrovia já é deficitária no sul do Brasil e precisa ser impulsionada.
Também queremos um contrato de futuro da ferrovia. Não é o MPF que define as políticas públicas, mas incentivamos percentuais do contrato (de concessão) para resolver questões socioambientais — como a população beira-trilho — que são muito importantes e não podem ser remediadas, simplesmente, em todo o processo.

Também temos trabalhado para a identificação da faixa de domínio dos trilhos. A ferrovia foi feita há mais de 100 anos, concedemos essa malha férrea e até hoje não se sabe a totalidade das faixas de domínio. Em alguns lugares é de 7 metros, em outros de 15 (metros), não há uma unanimidade.
Temos pressionado o poder público e a sociedade para que digam claramente o que esperam dessa malha e quais os trechos que queremos recuperar. Assim poderemos fomentar novas iniciativas aos trechos que porventura não se mostrem economicamente viáveis.
Fizemos uma representação no TCU (Tribunal de Contas da União) e estamos dialogando com o governo do Estado, setores produtivos e toda a sociedade para entender qual é o objetivo com as ferrovias gaúchas e da Malha Sul. Já tínhamos que ter isso claro, assim como os passos futuros, o que não aconteceu. Então é um grande desafio e, claro, uma imensa responsabilidade que pesa sobre o Grupo Cosan, que além da Rumo tem outras concessões no país.
GZH: o que o MPF propõe para as ferrovias gaúchas?
V: Primeiro, é imprescindível cruzar o estado até Rio Grande, pois estamos falando do melhor trecho de escoamento da produção, especialmente de soja. Depois entendemos que, de Cruz Alta, há dois trechos fundamentais que vão até Passo Fundo e Erechim, e depois à região de Catuípe, Santo Ângelo, Giruá e Santa Rosa, pois os volumes de produção justificam, se não uma ferrovia plena, ao menos uma shortline (de curta distância).
Na medida em que se fala que 500 mil toneladas de cargas por ano viabilizam uma ferrovia, aqui estamos falando de vários milhões de toneladas disponíveis para transporte em toda a região, então há viabilidade para uma ferrovia com tranquilidade.
Alguns trechos serão abandonados? Já estão, na prática. Alguns serão reativados? Sim, queremos que reativem o máximo de trechos possível. E, a partir daí, fazemos um esforço de fiscalização, bons contratos e a exigência do cumprimento desses contratos, para que existam garantias para que a ferrovia avance.
Veja, a ferrovia foi criada há 100 anos e ela impulsionou a fundação de muitas cidades, como Santo Ângelo, Santa Rosa e tantos outros. Se há 100 anos era viável, como pode não ser com toda essa produção que temos hoje? É um contrassenso dizer que é economicamente inviável em uma época em que a ferrovia transportaria muito mais cargas, com muito mais segurança jurídica e fatores vantajosos para a sociedade.
O grande esforço agora vai ser quantificar e fazer o acerto desse passado. Em seguida, projetar o futuro, entendendo o que queremos dessa malha férrea enquanto sociedade, para, depois, investir nas próprias ferrovias. A ferrovia é cara, sabemos, mas é mais caro não tê-la.
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