Barcelona, Espanha - Não existe letreiro sinalizando a porta de "La Poderosa", um espaço de dança e de apresentações em uma rua suja no bairro de Raval por aqui. A porta em si é baixa e assentada vários centímetros acima do chão; para entrar, os visitantes têm de subir e se esquivar.
Acima de um lance de escadas empoeiradas fica um sótão onde há, de um lado, uma plataforma levemente suspensa, usada para apresentações e, do outro lado, um bar. Em uma tarde recente, enquanto o sol entrava por uma parede de janelas, Javier Vaquero Ollero tomava uma cerveja e falava sobre o futuro.
- Realmente vivemos dia após dia - disse Vaquero Ollero, de 28 anos, dançarino, coreógrafo e membro do grupo que administra o espaço. - Não podemos criar projetos para o futuro. Não podemos ter uma ideia de um projeto ou desenhar um certo tipo de projeto artístico para daqui a um ano, porque não sabemos se de fato poderemos pagar o aluguel do mês que vem.
O aluguel do sótão em La Poderosa não é muito: cerca de 1,1 mil dólares mensais. Mas é difícil pagar até mesmo essa quantia quando apenas um pouquinho está entrando. Como a maioria das organizações de artes na Espanha, o espaço recebia boa parte de sua renda de subsídios públicos. No ápice, há alguns anos, La Poderosa recebia mais ou menos 90 mil dólares por ano de várias fontes do governo. O grupo usava o recurso para o aluguel, hospedagem de artistas e custos técnicos, e para pagar pequenos salários a três membros do grupo como funcionários.
Agora, eles não recebem nada.
A bolha imobiliária que teve início com a introdução do euro e explodiu na Espanha em 2008 não foi diferente daquela que ajudou a causar a recessão nos Estados Unidos. Mas a rígida reação à crise espanhola, focada em austeridade, e as restrições por conta da adesão da nação à zona do euro impediram qualquer recuperação semelhante.
A recessão do país continua a agravar-se; o desemprego continua a crescer. O índice de desemprego alcançou 22,8 por cento no final do ano passado, mais do que o dobro da média europeia, e é bem mais alto para os jovens.
Dois governos sucessivos, desesperadamente, reduziram gastos para atender as metas de ajuda da União Europeia. Na realidade, as decisões orçamentárias fracassaram em relação à redução da crise e foram devastadoras para a cultura. Uma boa proporção dos orçamentos de artes na Europa - geralmente acima de 50 por cento - vem de subsídios do governo, diferente dos Estados Unidos.
Doações particulares na Europa geralmente não têm dedução fiscal; quando subsídios são cortados, é difícil gerar nova renda para compensar. A venda de ingressos, a última fonte restante de renda, foi afetada na Espanha por um grande aumento no imposto sobre o valor dos ingressos, de 8 para 21 por cento (Usando a sigla espanhola para o imposto, o jornal El Pais cunhou uma rima amarga, chamando-o de "IVA-guilhotina".).
Um relatório arrasador produzido para o Ministério da Cultura e atualizado no final de 2012 dá conta de que, desde 2009, a organização cultural média havia reduzido seu orçamento ou volume em 49,8%.
Em suma, a situação das artes na Espanha é crítica, afetando tanto o mundo da vanguarda experimental, personificada por La Poderosa, quanto as instituições e personalidades muito mais famosas e centrais.
O Grande Teatro do Liceu em Barcelona, uma das principais salas de ópera do país, demitiu aproximadamente 100 funcionários desde o começo da crise. O tenor Plácido Domingo, sentado no saguão tranquilo do hotel Arenas, no litoral de Valência recentemente afirmou: - A esperança de todos é voltarmos para o nível de quantidade e qualidade que tínhamos antes da crise.
Mas a quantidade é um problema assustador no Palácio das Artes Rainha Sofia, em Valência, onde Domingo estava cantando na raridade de Verdi "I Due Foscari". Tanto o orçamento da casa quanto o calendário de apresentações foram reduzidos pela metade, e seu prédio retrofuturista Santiago Calatrava, que foi inaugurado em 2005, fica, portanto, fechado na maior parte do ano.
- O que foi gasto aqui foi em um momento em que a Espanha tinha muito dinheiro - a diretora do Palácio, Helga Schmidt, afirmou sobre o prédio.
Nem as maiores cidades nem as instituições mais importantes foram poupadas. Cortes forçaram o Museu Nacional do Prado, em Madri, a cancelar uma retrospectiva de Lucian Freud. O Teatro Real, na mesma cidade, enfrentou cortes de um terço de seu orçamento, forçando o cancelamento da muito esperada série de produções de ópera em colaboração com a Filarmônica de Berlim.
Embora grandes instituições tenham sofrido cortes profundos, as pequenas sofreram ainda mais severamente. A Orquestra de Girona, uma orquestra de câmara em uma cidade universitária a cerca de 100 quilômetros ao norte de Barcelona, recebeu garantia de menos de 30% do apoio que tinha há alguns anos. Após anos de programação relativamente forte, a orquestra só pôde bancar um único concerto este ano.
Organizações de médio porte como essas - grandes o bastante para ter gastos reais, porém pequenas o bastante para ver seus subsídios relativamente pequenos quase desaparecerem - podem acabar sendo as vítimas duradouras de uma crise financeira que finalmente irá polarizar a cena cultural, deixando apenas as grandes instituições, os Prados e os Teatros Reais, e as instituições menores. Mas para as instituições principais, com milhões de dólares de custos fixos e centenas de funcionários, a pior parte pode ser a incerteza perpétua.
- O que eu pedi é que o governo me dê garantia de pelo menos três temporadas da quantidade de verbas que me passarão sem mais cortes - Schmidt, de Valência, afirmou. - Porque até agora sempre tive cortes de última hora, e isso é prejudicial. Temos de mudar as coisas na última hora. Temos de desfazer projetos montados cuidadosamente. Dê-me três temporadas, e posso planejar.
Nos anos futuros, instituições artísticas na Espanha e por toda a Europa terão de mudar, por bem ou por mal, para um sistema de financiamento das artes mais parecido com o modelo privatizado dos Estados Unidos. O chefe de marketing do Liceu, Marti Torres Mata, entrou na empresa há dois anos após uma carreira no varejo, e um projeto recentemente divulgado, com sede em Nova York, busca apoio para o teatro entre doadores americanos.
Vaquero Ollero, do La Poderosa, é parte de um grupo de jovens artistas chamado de "Ocho Octubre", nome vindo da data, no ano passado, em que o grupo se encontrou pela primeira vez em resposta à onda de cortes a subsídios. A organização tem como objetivo pressionar o governo, treinar artistas em estratégias de autossustentabilidade, e ligar as artes com outras áreas que também passam por cortes drásticos, da saúde à educação.
Há alguns anos, um bordel abandonado em Madri foi aberto como uma espécie de microteatro, oferecendo peças curtas para uma plateia de apenas uma dúzia de pessoas. Tais experiências de apresentação tão íntimas se transformaram em uma espécie de movimento. Vaquero Ollero dançou por duas vezes em apresentações que aconteceram nos lares das pessoas, e ele comparece a cada vez mais eventos desse tipo. Há menos trabalho a se fazer, afirmou, mas sem a necessidade de responder a ninguém pelo financiamento; o que sobra é mais rústico e experimental.
- Quando você sabe que não tem um teatro, isso provoca algo bem diferente - disse. - Isso afeta o trabalho. As condições estão mudando, mas isso não significa que o trabalho será pior.
Para muitas instituições menores, sair da grade de subsídios provoca uma liberdade inesperada e bem-vinda dos formulários e da burocracia. - Não passamos mais tanto tempo organizando, porque não precisamos organizar nada - Vaquero Ollero acrescentou. - Temos mais tempo para ensaiar e pesquisar.
Como os shows de dança acabaram em Barcelona, Vaquero Ollero passa a maioria de seu tempo trabalhando fora do país. Ele pensou em ir para a Cidade do México ou para o Brasil.
- Não estou aqui para sofrer - disse.
The New York Times
Setor artístico espanhol sofre com austeridade
Rígida reação à crise, focada em restrições e cortes de gastos, deixa instituições culturais em situação crítica na Espanha
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