Uma investigação da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco) de São Leopoldo aponta embates entre criminosos de facções responsáveis por tráfico de drogas e os que atuam com cigarro ilegal. Conforme apuração do Grupo de Investigação da RBS (GDI), grupos do crime organizado vêm avançando sobre diversas atividades clandestinas no Rio Grande do Sul, como bingos e jogo do bicho.
Ao amanhecer de 7 de abril, um caminhão-baú com luzes apagadas saía de um depósito de cargas no bairro Sol Nascente, em Estância Velha, quando foi abordado por policiais da Draco. Como os agentes já suspeitavam, a carroceria estava abarrotada de caixas de cigarros falsificados.
No interior do depósito, também foi recolhida mercadoria. Ao todo, agentes encontraram R$ 2,5 milhões em carteiras da marca Classic, paraguaia e de venda proibida no Brasil. Dois receptadores foram presos em flagrante.
A diferença entre essa e outras dezenas de apreensões do tipo é que os agentes sabiam que a carga pertencia à facção Os Manos. Apenas com aquele depósito, o grupo faturava em torno de R$ 500 mil semanais, calcula o delegado Ayrton Martins Junior.
Agentes da Draco trabalham com a informação de que a facção tem expulsado criminosos intermediários e começou a fazer importação direta do cigarro. Em casos mais brandos, cobra de receptadores um percentual.
Além disso, vendedores ambulantes de celulares e de vestuário barato, que podem ser contrabandeados e sem nota fiscal, estão entre os alvos das extorsões. Quem quer trabalhar precisa pagar propina – de R$ 100 a R$ 200 por semana. Uma operação desencadeada pela 17ª Delegacia de Polícia Civil em 2019, na área central de Porto Alegre, prendeu integrantes da facção Bala na Cara, responsáveis por extorsões. As chantagens pararam por um tempo, mas estão de volta, afirma um comerciante que atua no Centro.
“Querem participação até na sinuca”
O GDI entrevistou um criminoso receptador de cigarros piratas. Ele afirma ter sido extorquido por facção, mas não informa se procurou a polícia para relatar o crime. Ele também não quis se identificar.
Tu trazes do Exterior os cigarros ou só revende?
Quem traz é um outro pessoal, eu só distribuo e revendo. Aqui no Vale do Sinos sai mais Classic (cigarro paraguaio).
Como ocorre o assédio da facção?
Esse pessoal de facção (Os Manos) tá em tudo que é canto. Sempre tem alguém, que conhece alguém, que conhece alguém... Eles passam em todos os comércios, avisando que é para comprar só deles. É sempre a mesma coisa, aquele aviso com tom de ameaça. E depois que você começa a comprar dos caras, não pode mais parar. Vira escravo. Quem não trabalha com eles, matam. Eles não têm ido tanto nos comércios, nos bares. Vão mais nos cigarreiros (receptadores maiores), obrigam a gente a comprar deles. Até podemos comprar direto com nossas fontes, mas temos de pagar um acerto para eles (facções). Tá todo mundo com muito medo. Para mim, vieram dois caras e avisaram: tem de comprar deles. Se não eles me tiram da jogada. E o cigarro deles ainda é mais caro.
O que você acha que pode ter acontecido para que facções decidissem entrar nesse negócio?
A gente pensou que eles não viriam para esse lado do cigarro. Estão vindo, provavelmente, porque devem estar mal de dinheiro. Tem rolado também muito assalto. Roubo de carga de cigarro.
Eles ameaçam só o pessoal do cigarro ilegal?
Não. A facção quer participação até nas mesas de sinuca do bar. Por exemplo: a ficha da mesa de sinuca ou de fla-flu era R$ 1. Subiu para R$ 2. Desses, R$ 1 vai para a facção. Começaram a apertar os bares com isso. Os bicheiros, para trabalhar, também têm de pagar acerto pra facção.
Problema que afeta o cidadão
Qual a importância dessa disputa entre facções, contraventores e outros criminosos para o cidadão comum? Grande. Facções são mais regradas. E quanto mais organizado o delinquente, mais poder corruptor ele tem. É o enraizamento do crime nas bases da sociedade, diz a chefe da Polícia Civil no Estado, delegada Nadine Anflor:
– Quando o crime organizado abraça esses mercados clandestinos, o que acontece é a “evolução” do que antes poderia ser um pequeno comércio ilegal para um negócio mais articulado, em que o investimento financeiro possibilita criar espécie de empresa, com divisões, chefes e metas. Em resumo, trabalha para o engrandecimento da atividade criminosa. Passa a ser atividade altamente lucrativa, mas que configura uma contravenção, do ponto de vista das leis.
Francisco Amorim, doutor em Sociologia, professor da UniRitter e integrante do grupo de pesquisa Violência e Cidadania da UFRGS, diz que outra consequência negativa da migração das facções para atividades como jogos ilegais é que traficantes estão acostumados a revides sangrentos. Especialmente quando recebem “não” como resposta.