
A Polícia Civil cumpre 15 mandados de busca e apreensão contra pessoas físicas e jurídicas na manhã desta terça-feira (14), na Operação Abecedário, em ofensiva que investiga irregularidades e prejuízo ao erário na contratação de um empresa terceirizada pelo Departamento Autônomo de Estadas de Rodagem (Daer) entre junho e dezembro de 2016, já no governo de José Ivo Sartori.
Entre os delitos apurados, estão crimes licitatórios e contra a administração pública, superfaturamento, associação criminosa e possível lavagem de dinheiro. O caso foi revelado em reportagem do Grupo de Investigação da RBS (GDI) em julho de 2017.
As buscas estão sendo feitas em Porto Alegre, Cachoeirinha, São Leopoldo, Passo Fundo e Rio de Janeiro. Entre os alvos dos mandados, constam empresários do setor de tecnologia, como Michel Costa, que teve passagem pela prefeitura de Porto Alegre em 2017, o ex-diretor-geral do Daer Ricardo Moreira Nuñez e o ex-diretor de Administração e Finanças do Daer Saul Sastre, indicado pelo PSB para ocupar o cargo no governo Sartori. A investigação é liderada pelos delegados Max Otto Ritter e André Lobo Anicet, da Delegacia de Polícia de Repressão aos Crimes contra a Administração Pública e Ordem Tributária (Deat).
Além do departamento de estradas, é pivô da história a empresa OWL Gestão e Tecnologia — depois ela trocou de nome para Disruptcode e LAB308. Sastre alegou "urgência ou calamidade pública" para fazer a contratação de uma terceirizada para assumir o protocolo da autarquia mediante procedimento de carta-convite, um meio licitatório simplificado em que o contratante envia pedidos de orçamento a cinco empresas de sua escolha.
Todas as que receberam os convites da autarquia tinham sócios em comum, conforme foi revelado pelo GDI a partir dos contratos sociais arquivados na Junta Comercial. A OWL foi declarada vencedora por ter apresentado o menor preço para assumir o setor de protocolo do Daer, que antes da terceirização tinha equipe própria para o serviço. Foram R$ 616,8 mil por um contrato de seis meses.
No segundo semestre de 2016, a Contadoria e Auditoria-Geral do Estado (Cage) registrou em relatório oficial que a contratação da terceirizada teve sobrepreço de R$ 422 mil. Condutor do processo, Sastre teria usado de forma inadequada o argumento de "urgência ou calamidade pública" para acelerar a contratação, avaliou a Cage. O papel de Nuñez, então diretor-geral, foi ao menos o ato de assinatura do acordo com a OWL.
Após o término dos seis meses de contrato, a terceirizada deixou o protocolo do Daer e a equipe própria da autarquia voltou a atender no setor. A Cage recomendou que fosse exigida a devolução dos valores pagos em excesso à OWL, mas isso não ocorreu. Após a publicação das reportagens do GDI, o governo estadual determinou a abertura de uma sindicância, que responsabilizou duas pessoas pela contratação e emitiu 12 recomendações. Após a finalização do relatório desta comissão, Sastre pediu demissão do Daer, em 22 de setembro de 2017. Nuñez já havia deixado o cargo anteriormente, por outras razões.
A operação da Polícia Civil foi batizada de Abecedário pela característica dos nomes das empresas de sócios em comum que foram convidadas para enviar orçamento ao Daer: em maioria, as nomenclaturas eram formadas por siglas que exploravam várias letras do alfabeto, como a OWL.
Detalhe
O setor de protocolo do Daer, cuja terceirização está sob suspeita, fica no térreo do prédio da autarquia, na Avenida Borges de Medeiros, em Porto Alegre. É o local onde são encaminhados processos, documentos e requerimentos, além do recolhimento de taxas.
Ex-diretor do governo Marchezan entre os alvos
Um dos alvos da Operação Abecedário, da Polícia Civil, é Michel Costa. Ele era integrante do grupo de sócios em comum que ganhou o contrato para o serviço de protocolo do Daer. Costa ingressou como sócio da OWL em junho de 2016, quando a empresa passou a atuar na autarquia estadual como terceirizada.
No segundo semestre daquele ano, enquanto recebia valores supostamente superfaturados do Estado, segundo a Cage, a OWL de Costa, já sob o nome de Disruptcode, foi contratada, ao custo de R$ 38 mil, para prestar serviços de redes sociais na campanha do então candidato à prefeitura de Porto Alegre, Nelson Marchezan (PSDB). Depois, a mesma OWL/Disruptcode desenvolveu e registrou o Banco de Talentos, plataforma em que interessados em trabalhar na prefeitura registram currículos e são selecionados para entrevistas. A ferramenta, valorizada pelo prefeito como um dos feitos da sua gestão, foi entregue ao município sem custos.
Com a aproximação, Marchezan escolheu Costa, especialista em soluções tecnológicas de mobilidade urbana e meios de pagamento, para ser diretor-técnico da Procempa. Até então empresário de sucesso no ramo, ele passou ao setor público tendo a missão de modernizar o transporte público de Porto Alegre. A ideia era instalar monitoramento dos coletivos via GPS — que informaria, por exemplo, o tempo que faltava para um veículo chegar a determinado ponto de embarque de passageiros — e dispositivos como reconhecimento facial e câmeras de segurança.
Costa iniciou o processo pelo monitoramento de GPS. Ele também foi nomeado presidente do Conselho de Administração da Carris. No período de testes da tecnologia, etapa que antecederia a licitação, uma das empresas de Costa à época, a Safeconecta, era a única a realizar os experimentos com GPS na frota da Carris — o que poderia lhe render alguma vantagem competitiva para assinar o contrato no futuro. Reportagem do GDI revelou o possível conflito de interesses em 14 de julho de 2017. Costa ainda se manteve no cargo por 26 dias, mas não resistiu após a notícia de que outra das suas empresas, a OWL/Disruptcode, estava sob suspeita de ter recebido R$ 422 mil em superfaturamento do Daer. Ele pediu demissão ao prefeito Marchezan no dia 9 de agosto de 2017, deixando as funções na Procempa e na Carris.
A Operação Abecedário, da Polícia Civil, cumpre mandado de busca e apreensão nesta terça-feira (14) na sede da Safeconecta, no Rio de Janeiro. O objetivo é apurar o eventual envolvimento da empresa com a licitação via cartas-convite que culminou na assinatura de contrato prejudicial ao Daer. A atuação na prefeitura não é o foco da investigação.
Contraponto
Saul Sastre
Diz o advogado Gabriel Pauli Fadel: "Com relação ao sobrepreço, conforme ele (Saul Sastre) já esclareceu ao Tribunal de Contas do Estado, o parâmetro utilizado não é compatível com o serviço contratado para avaliar qualquer sobrepreço. Foi um serviço diferenciado. Sobre os sócios das empresas serem os mesmos, essa não era uma coisa a ser examinada diretamente pelo diretor de Administração e Finanças do Daer, mas por outros setores, inclusive o jurídico. A contratação foi aprovada pela diretoria do Daer, pelo jurídico e pela comissão de controle. Não foi um ato isolado".
Michel Costa
Diz o advogado Guilherme Abrão: "Como a operação foi hoje (terça) pela manhã, não tivemos ainda acesso ao inquérito policial para nos manifestarmos de maneira mais apropriada. Mas temos convicção da inocência do Michel e de que a situação será devidamente esclarecida ao longo do inquérito, assim que tivermos acesso e que pudermos fazer o contraponto das acusações".
Ricardo Moreira Nuñez: Pela assessoria de imprensa da Secretaria dos Transportes, comunicou que não irá se manifestar no momento.