
O governo federal estuda a possibilidade de zerar as tarifas do transporte coletivo público. A medida foi cogitada pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, em entrevista nesta terça-feira (7) ao programa Bom dia, ministro, da EBC.
— Nós sabemos que transporte público no Brasil, sobretudo urbano, é uma questão importante para o trabalhador. Nesse momento, nós estamos fazendo uma radiografia do setor, a pedido do presidente. Tem vários estudos que estão sendo recuperados pela Fazenda para verificar se existem outras formas mais adequadas de financiar o setor — afirmou Haddad.
Entre os pontos que estão sendo levantados na radiografia, Haddad destacou aspectos como o custo total do transporte público, o volume atual de subsídios públicos ao setor, a contribuição das empresas por meio do vale-transporte e o valor pago diretamente pelos trabalhadores, além de gargalos e oportunidades tecnológicas.
— Vamos perseverar nesse estudo para apresentar uma radiografia do setor e nós verificarmos quais são as possibilidades de melhorar isso, que tem um apelo social muito forte — complementou o ministro.
Leia abaixo:
Onde a tarifa zero já é realidade
No Brasil, a competência principal acerca do serviço de transporte coletivo urbano é dos municípios, conforme definido pelo artigo nº 30 da Constituição Federal. Por isso, na prática, são as prefeituras que estabelecem o modelo e regulam o funcionamento deste serviço no país, muitas vezes se utilizando do serviço de concessionárias privadas para essa operação, como ocorre em Porto Alegre.
Apesar de a discussão sobre a tarifa zero ter ganhado força em âmbito nacional nos últimos dias, o transporte coletivo público gratuito já é realidade em diversos municípios brasileiros. O primeiro foi Conchas, no Estado de São Paulo, que implementou a medida em 1992.
Atualmente, segundo estudo da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), 170 municípios brasileiros já implementam uma política de tarifa zero no transporte coletivo. Destes, 138 oferecem a tarifa zero integral, ou seja, em todos os dias da semana.
Também segundo o levantamento da NTU, 58% dos municípios que utilizam a tarifa zero hoje são de pequeno porte, com população igual ou menor a 50 mil habitantes.
No RS
Algumas cidades no Rio Grande do Sul já implementam políticas de tarifa zero nos seus sistemas municipais de transporte coletivo. A pioneira foi Pedro Osório, no sul do Estado, que estabeleceu a medida em 2018, financiando a implementação (cerca de R$ 10 mil mensais) com recursos de impostos municipais e repasses do Estado e da União.
Em 2022, Parobé, no Vale do Paranhana, também aderiu à tarifa zero. A prefeitura paga cerca de R$ 100 mil mensais para que uma empresa privada opere o serviço. Essa empresa recebe R$ 11 por quilômetro rodado, com recursos advindos da cobrança de IPVA, enquanto a população não paga diretamente para usar o transporte coletivo.
— A tarifa zero tem dado grande contribuição ao nosso município. Aumentamos o número de passageiros diários de cerca de 200 para mais de mil e, com esse dinheiro que sobra pra população, eles acabam gastando mais no comércio da cidade, tendo uma qualidade de vida melhor e fazendo a economia da cidade girar — argumenta o prefeito Gilberto Gomes Junior (PDT).

Em Canoas, a tarifa zero começou a ser implementada em 2024, como medida excepcional de apoio à população após a enchente de maio. Contudo, a medida, que é inteiramente custeada pela prefeitura, foi prorrogada até o final deste ano. Segundo a prefeitura, o número de usuários do sistema cresceu 53% a partir da gratuidade.
— Conseguimos reduzir consideravelmente o aumento da frota de carros, que impacta muito a mobilidade urbana e também a qualidade do nosso ar. Além disso, temos notado uma diminuição no número de pessoas que faltam a consultas e exames. Temos convicção de que essa medida beneficia a população, o comércio local e o acesso aos serviços públicos — destaca o prefeito Airton Souza (PL), acrescentando que o município avalia a possibilidade de oferecer o transporte gratuito de forma definitiva.
Como financiar o transporte gratuito
Para Rafael Calabria, geógrafo pesquisador de mobilidade urbana no grupo BR Cidades, há diversas formas de financiamento da tarifa zero no transporte coletivo.
— As possibilidades incluem usar recursos próprios do orçamento municipal, para os municípios que têm essa margem, usar recursos de uma grande fonte de renda específica, como Maricá (RJ), que usa os royalties do petróleo, ou mesmo criar fontes alternativas de financiamento, como uma possível taxação dos aplicativos de transporte individual, a cobrança de um pedágio urbano, a utilização do valor recolhido de multas de trânsito, ou mesmo usar o espaço de propaganda nos próprios ônibus — comenta o pesquisador, especialista em Planejamento e Gestão de Cidades.
Embora seja mais presente em cidades de pequeno porte, o que facilita a implementação, não é impossível que municípios maiores também apliquem a tarifa zero, argumenta Daniel Santini, pesquisador de mobilidade urbana na Universidade de São Paulo (USP).
— Nos últimos dias, uma proposta de tarifa zero, que acabou rejeitada, foi montada em Belo Horizonte, com a principal fonte de recursos sendo a taxação de empresas com mais de nove funcionários, que pagariam um valor por mês por empregado, com uma revisão do atual vale-transporte. Essa é uma possibilidade para cidades grandes, que têm muitas empresas de maior porte, e que podem somar às outras fontes alternativas de financiamento, de acordo com a demanda e necessidade de cada município — reforça.
Atualmente há projetos de lei e emendas à Constituição Federal que tratam do tema. O primeiro texto em trâmite sobre este tópico é o PL 3278/2021, de autoria do ex-senador mineiro Antonio Anastasia, hoje ministro do Tribunal de Contas da União (TCU). A proposta visa atualizar o Estatuto da Cidade e a Política Nacional da Mobilidade Urbana, estabelecendo a criação de um Sistema Único de Mobilidade (SUM), com inspiração no Sistema Único de Saúde (SUS), também universal e gratuito à população.
A criação de um Sistema Único de Mobilidade também é objeto da PEC 25/2023, de autoria da deputada federal Luiza Erundina (PSOL-SP). A proposta de Erundina também estabelece que os sistemas de transporte sejam completamente gratuitos aos usuários, prevendo um período de transição assim como ocorreu com o SUS na década de 1980. Como formas de custear a medida, a proposta define a alteração do formato do vale-transporte e a possibilidade de as prefeituras criarem novas fontes de recursos, como taxas sobre o uso do carro nas cidades.
Na Câmara dos Deputados, há ainda o projeto de lei 1280/2023, de autoria do deputado Jilmar Tatto (PT-SP). Tatto, que também coordena a Frente Parlamentar da Tarifa Zero, propõe que a medida, que permitiria adesão voluntária dos municípios, seja financiada por empresas a partir de revisão da lei nº 7.418 de 1985, que instituiu o vale-transporte no Brasil.
De acordo com estimativa da NTU, a instituição da tarifa zero universal, conforme a demanda atual de uso do transporte coletivo, custaria cerca de R$ 75 bilhões por ano em todo o país.
— A adoção da tarifa zero tem potencial para promover justiça social, inclusão e sustentabilidade, mas, para ser efetivada como uma verdadeira política pública, precisa ser bem planejada, ter fontes bem estabelecidas de recursos e um modelo de financiamento sustentável para o curto, médio e longo prazo — afirma Francisco Christovam, diretor executivo da NTU.
Potenciais benefícios da tarifa zero
De forma geral, o número de usuários de ônibus vem caindo nos últimos anos. Nas 11 cidades mais populosas do Brasil, conforme levantamento do pesquisador Daniel Santini, a redução de usuários foi de cerca de 30% entre 2013 e 2023. Em Porto Alegre, a queda foi de 48% entre 2010 e 2025.
— O modelo atual do transporte público no Brasil se esgotou, e a queda de passageiros é um reflexo disso. Um dos primeiros benefícios da tarifa zero é justamente o aumento de usuários do transporte público, que contribui para desafogar o trânsito nas cidades e também traz benefícios ambientais, com a redução da emissão dos gases de efeito estufa causada pelos carros, que circulam menos — acrescenta Santini.
Além da melhoria na mobilidade urbana e da preservação do meio ambiente, a tarifa zero no transporte coletivo pode gerar outros benefícios à população das cidades, como destaca Rafael Calabria:
— A tarifa zero é uma democratização do transporte coletivo, que dá acesso a diversos serviços essenciais. O preço da tarifa, na prática, é uma barreira ao direito de ir e vir das populações mais pobres e periféricas das cidades, que muitas vezes deixam de ir a uma consulta médica no SUS ou deixam de procurar emprego no centro, por exemplo, por falta de condição de pagar a passagem, já que esse valor pesa muito no orçamento de muitas famílias brasileiras.
E em Porto Alegre?
Em Porto Alegre, o debate acerca da gratuidade no transporte coletivo também tem tomado corpo nos últimos anos. Em 2024, foi instalada uma frente parlamentar em defesa da tarifa zero na Câmara Municipal, proposta pela vereadora Karen Santos (PSOL).
— O principal objetivo da frente é abrir essa discussão e colocar a tarifa zero como algo necessário e possível dentro do nosso município, para democratizar de fato o acesso ao transporte público, principalmente para a população periférica. Há diversas formas de gerar recursos para custear essa operação, o modelo proposto em Belo Horizonte é um exemplo, e através da nossa frente parlamentar seguiremos tensionando esse debate — afirma a vereadora.
Para Adão de Castro Júnior, secretário de mobilidade urbana de Porto Alegre, a implementação da tarifa zero na Capital precisaria de um planejamento de longo prazo. O secretário destaca que, primeiro, esperava que o governo federal arcasse com os custos da gratuidade das tarifas para os idosos, que custam um total anual de cerca de R$ 130 milhões. Além disso, Castro ressalta que a tarifa zero aumentaria a demanda pelos serviços de transporte na Capital, o que também exigiria um reforço de infraestrutura.
— A tarifa zero implicaria não só custos altos para a administração pública, que, possivelmente, podem inserir novos impostos, mas também um planejamento para dar conta do aumento da demanda de usuários com a capacidade do município de suportar esse aumento, com investimentos na infraestrutura, aquisição de mais ônibus, construção de terminais, corredores, e assim por diante. Hoje, temos cerca de 600 mil passageiros por dia e, com uma tarifa zero, podemos projetar um aumento para entre 1 milhão e 1,2 milhão de passageiros por dia — destaca.




