
Eles circulam em meio aos tapumes e ao arame farpado, formando uma fila próximo à escada. Um a um, são atendidos numa antiga cela onde antes havia um catre de concreto com argolas de ferro chumbadas à parede. A mobília segue espartana, limitada a uma mesa e duas cadeiras, mas de um lado está um defensor público e, do outro, um paciente com transtornos mentais.
São os últimos 36 internos do Instituto Psiquiátrico Forense (IPF), todos em processo de retomar a liberdade. Único sanatório judicial do Rio Grande do Sul e o segundo mais antigo do Brasil, com cem anos de atividade, o IPF tem data para fechar as portas: novembro de 2026. Até lá, o governo do Estado pretende ter encaminhado todos os residentes de volta para suas famílias ou para residenciais terapêuticos.
A medida atende a uma decisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Editada em fevereiro de 2023, a resolução nº 487 ordenou o fechamento de todos os hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico do país. O prazo inicial do IPF, agosto de 2024, não foi cumprido e acabou prorrogado para 2026.
Pelo novo regramento, os pacientes em conflito com a lei devem ser atendidos na rede pública de saúde, com tratamento ambulatorial na Rede de Atenção Psicossocial e nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) ou, em caso de internação, em hospitais gerais. Desde então, o Estado já desinstitucionalizou 175 pacientes, dos quais quatro voltaram a ser presos (dois deles continuam segregados).
São pessoas que cometeram algum crime grave e, por terem sido consideradas inimputáveis, recebem medida de segurança, ou seja, ficam submetidas a internação compulsória em hospital psiquiátrico de custódia, sendo reavaliadas anualmente para aferição de eventual avanço no caso clínico que possa permitir o retorno ao convívio em sociedade.
Impasse no STF, incerteza no IPF

A exemplo de quase todas as iniciativas inerentes à política antimanicomial, o assunto divide opiniões nos sistemas de justiça e de saúde pública.
Quatro ações diretas de inconstitucionalidade questionam, no Supremo Tribunal Federal, a legalidade da resolução do CNJ. Relator do caso, o ministro Edson Fachin votou para modular os efeitos da decisão, mantendo a validade das medidas de segurança de internação. Para o ministro, em situações excepcionais, o cumprimento deve ser feito em hospitais psiquiátricos e com acompanhamento da polícia penal, desde que a instituição não tenha característica asilar. O voto de Fachin foi acompanhado pelo ministro Luís Roberto Barroso, mas o julgamento foi suspenso por pedido de vista de Flávio Dino e deve ser retomado no final do mês.
No IPF, a controvérsia aumentou quando cinco prédios da sede do instituto, no bairro Partenon, em Porto Alegre, foram demolidos no início de setembro. Se antecipando aos prazos do CNJ, o governo do Estado decidiu construir no espaço a nova sede da Polícia Penal, colocando abaixo quatro unidades terapêuticas e a sede administrativa. O ingresso das máquinas no terreno de 2,5 hectares ampliou a sensação de fechamento iminente do espaço.
Alvo de quatro interdições judiciais sucessivas, o IPF não recebe novos pacientes desde junho de 2023. A proibição se deu por conta das condições insalubres de alojamento, da decrepitude dos prédios, da escassez de profissionais de saúde e de punições aos pacientes.
— Sou juiz com experiência em execução penal, área em que atuo desde 2010. Mesmo assim, me surpreendi com as condições do IPF. São violações constantes de direitos fundamentais dos pacientes, com problemas de coleta de lixo, de alimentação, prédio caindo aos pedaços, fiação elétrica condenada, umidade e até tortura de pessoas internadas — diz o titular da Vara de Execuções Penais e Medidas Alternativas, juiz Alexandre Pacheco.
Defensor do fechamento do IPF, Pacheco é quem dá a palavra final no processo de saída dos internos. Para cada caso, uma comissão chefiada pela diretora-adjunta do hospital, a terapeuta ocupacional Karen Hoffmann, elabora um plano terapêutico singular. Nele são observados histórico do paciente, tratamento, medicação e é definido seu destino, se para o retorno à família ou para um residencial terapêutico.
A confecção desses planos começou em abril de 2024, porém a alta progressiva de pacientes — em que o interno é liberado aos poucos, sob acompanhamento — é praticada desde os anos 1960 no IPF, numa iniciativa pioneira no país. A grande diferença é que agora não há perspectiva de volta caso haja regressão do quadro clínico.
— A gente leva em consideração aspectos individuais. Se tem rede de apoio, onde vai morar, como funciona a rede de saúde que irá atendê-lo. Há casos em que a rede conhece o paciente melhor do que nós, porque já o atendia há bastante tempo. À medida que ele vai se adaptando, a gente vai se afastando — explica Karen.
O futuro dos pacientes...

Entre os 36 internos do IPF, há 35 homens e uma mulher, cujos crimes cometidos vão desde furto a homicídio. Eles convivem diariamente, mas dormem em alas separadas. Todos ficam trancados durante a noite, mas têm liberdade para circular pelo pátio durante o dia. Há ainda um paciente que trabalha fora, com carteira assinada.
A vigilância é feita por 30 policiais penais e são raros os casos de agressão. Os internos recebem visita de um defensor público e de um pastor todas as semanas e contam com uma unidade básica de saúde aberta 24 horas. A maior parte dos quartos tem camas com colchões de espuma, as paredes riscadas e o espaço cortado por varais improvisados presos à janela. Na última terça-feira (14), quando Zero Hora visitou o IPF, as dependências recém haviam sido faxinadas por uma equipe de limpeza.
— Não trabalhamos numa perspectiva só de polícia penal, mas de todas as instituições envolvidas, principalmente de saúde, o Judiciário e o Ministério Público, para que a gente faça uma desinstitucionalização com responsabilidade. Queremos que eles possam se inserir na sociedade, seja na sua comunidade ou em residenciais terapêuticos, com atendimento nas redes de atenção psicossocial, que são os CAPS. Não estamos acelerando nenhum processo — afirma a diretora do Departamento de Tratamento Penal da Polícia Penal, Rita Leonardi.
O gargalo atual enfrentado pela direção do IPF é a falta de vagas em comunidades terapêuticas. Com origem em 28 municípios, todos os pacientes remanescentes aguardam decisão da Justiça em ações que pedem a abertura de vagas na rede pública.
A elevada demanda por atendimento em saúde mental é justamente o que mais preocupa especialistas no tema. Somente em Porto Alegre há 5.230 pessoas na fila para consulta nos CAPS destinados a adultos.
— Há municípios bem organizados, outros menos. Porto Alegre, que deveria ser uma referência, enfrenta sérias dificuldades. Mas eu não identifico problema grave nos pacientes que saem do IPF. Todos são monitorados. Não é a demanda do IPF que está impactando a saúde pública de Porto Alegre — diz Pacheco.
Vice-presidente do Conselho Regional de Medicina do RS (Cremers), Eduardo Trindade discorda do juiz. Com visão contrária à política antimanicomial, a entidade entende que remeter pacientes em conflito com a lei para atendimento na rede geral gera não só riscos de reincidência, como tende a piorar a condição de saúde dos internos em uma estrutura já sobrecarregada.
— A resolução do CNJ não ouviu os psiquiatras forenses. É muito mais política do que técnica. A rede ambulatorial do SUS não funciona nem para a população em geral, imagina para essa comunidade. Ele é tirado do convívio social não apenas porque cometeu um crime, mas também para não cometer outros. Estamos vendo um retrocesso ser vendido como avanço, mas, na verdade, é um perigo para a sociedade — comenta Trindade.
Para rebater o temor do Cremers, a Vara de Execuções Penais e Medidas Alternativas exibe o índice de apenas 2,28% de reincidência entre os 175 egressos do IPF.
... e os pacientes do futuro
O maior receio de outros operadores em justiça e saúde mental, porém, é o tratamento que será oferecido aos novos casos de pacientes psicóticos em litígio com a lei.
O mais recente interno do IPF, por exemplo, está lá há dois anos e cinco meses. O paciente mais antigo, há 19 anos e oito meses. Durante todo esse tempo, eles receberam monitoramento constante, com obediência severa à medicação. Contudo, fora de um ambiente controlado, não haveria garantia de continuidade do tratamento nem contenção imediata em casos de surto, já que as vagas em residenciais terapêuticos são exclusivas para pacientes com histórico de institucionalização.
— Para os casos de pessoas que já estavam institucionalizadas, talvez os residenciais terapêuticos até sejam efetivos. Entretanto, para alguns casos e para os novos casos, não temos um equipamento de saúde adequado a garantir, primeiro, que essa pessoa realmente receba tratamento, mesmo que ela não deseje, e, de outro lado, que ela não coloque em risco a sociedade — pontua a promotora pública Alessandra Bastian da Cunha.
Coordenadora do Centro de Apoio Operacional Criminal e membro do Núcleo de Assessoramento à Execução Penal do Ministério Público, Alessandra cita como exemplo o caso de um paciente esquizofrênico que entrou em surto em outubro de 2024 em Novo Hamburgo. Exímio atirador, ele matou dois policiais militares, o pai e um irmão e feriu outras cinco pessoas antes de ser morto pela polícia.
— Faço parte do Grupo Nacional de Execução Penal, e essa realidade tem preocupado todos os Estados. Tem pessoas que cometeram crimes graves com laudo de insanidade. Se o júri acolhe esse laudo e é um feminicida, que é alguém que tem um alto índice de reincidência, faço o quê? Boto ele num hospital geral, num leito psiquiátrico do lado da maternidade? Mando ele para casa? Esse é o grande questionamento que nós temos que fazer — diz a promotora.

Atualmente, pacientes psiquiátricos presos em penitenciárias são tratados no Hospital Vila Nova, na zona sul de Porto Alegre. No local, há 15 leitos masculinos, todos monitorados por policiais penais. Em Guaíba, há mais 10 leitos femininos. Contudo, pacientes egressos do IPF não mantêm mais vinculação com o sistema prisional, portanto, em tese, não podem ser internados nesses hospitais. Diante dessa limitação, há ainda temor de surgimento de residenciais terapêuticos clandestinos, em que famílias sem acesso à rede pública, por falta de vagas, internam pacientes em surto, a exemplo do que acontece seguidamente com dependentes químicos.
Embora também manifeste preocupação com futuros casos de crimes graves cometidos por pessoas com transtornos mentais, o juiz Alexandre Pacheco sustenta que o fim dos manicômios judiciais é irreversível.
Estamos quebrando um paradigma histórico.
ALEXANDRE PACHECO
Juiz da Vara de Execuções Penais e Medidas Alternativas
— Essas dificuldades são naturais. Ser favorável à política antimanicomial não significa que está tudo bem. Temos um longo caminho, é preciso aprimorar o atendimento na rede e os riscos existentes. Mas, pelo menos em relação ao IPF, nos casos pelos quais eu sou o responsável, eu estou fazendo a minha parte e faço bem — assegura o magistrado.
Uma carta assinada por 42 profissionais e entidades durante o 27º Congresso Gaúcho de Psiquiatria, realizado em setembro na Capital, manifestou preocupação diante do fechamento dos hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico. Citando o caso do IPF, o documento abordou as consequências legais, éticas e sociais da desassistência psiquiátrica.
"Ressaltamos a indicação técnica de manutenção e fortalecimento das instituições forenses com recursos financeiros adequados ao seguimento da assistência ética e efetiva da população portadora de graves doenças mentais. Caso contrário, veremos os presídios se transformarem em manicômios", diz a carta.
Diretor da Associação de Psiquiatria do RS e com 31 anos de serviço público, Pedro Zoratto é o único psiquiatra em atuação atualmente no IPF. Prestes a se aposentar, é um entusiasta da alta progressiva, mas mantém forte resistência ao fechamento do instituto.
— A luta antimanicomial trouxe uma visão ideológica da antipsiquiatria. Ninguém quer hospitais asilares, depósitos humanos, mas por que não pode ter um hospital psiquiátrico assim como tem instituto de cardiologia, hospital do câncer? — questiona o especialista.



