
O jornalista britânico Dom Philips registrou em testamento que a esposa, Alessandra Sampaio, seria a responsável pelo seu legado. Por isso (ou, mais provavelmente, pelo amor e admiração que ela mantém e que são flagrantes quando fala dele), depois que Philips foi assassinado, há três anos, ela garantiu que o livro no qual ele trabalhava fosse concluído e agora se dedica a que a obra seja lida, para que o trabalho do marido não seja silenciado pela violência.
— Eu sou atravessada também por uma visão indígena que fala que eles se tornaram, e eu acho isso muito bonito, que eles se tornaram espíritos da floresta, então, inclusive agora, eles continuam protegendo — confidencia Alessandra.
Como Salvar a Amazônia — Uma Busca Mortal por Respostas foi lançado no Brasil pela Companhia das Letras no fim de maio e teve edições também no Reino Unido e nos Estados Unidos. Philips vivia no Brasil desde 2007 e trabalhava na pesquisa para esta obra, acompanhando o indigenista Bruno Pereira, quando ambos foram mortos a tiros no Vale do Javari, no Estado do Amazonas. Os suspeitos do assassinato, ainda sem condenação, seriam envolvidos com pesca ilegal na terra indígena e estariam tentando interromper o trabalho de Pereira, que atuava na proteção da área.
Dom Philips havia escrito quatro capítulos e indicado, em anotações, os caminhos que seguiria em outros seis. Dez jornalistas, amigos dele, aceitaram a missão de, voluntariamente, concluir o trabalho. Os colaboradores foram Andrew Fishman, David Davies, Eliane Brum, Helena Palmquist, Jon Lee Anderson, Jonathan Watts, Rebecca Carter, Stuart Grudgings, Tom Hennigan e Tom Phillips. O posfácio é assinado pelo líder indígena Beto Marubo.
Alessandra Sampaio conversou com Zero Hora sobre o livro, a memória do marido e as investigações sobre o caso. Confira os principais pontos da entrevista abaixo.
O Dom, infelizmente, acabou mais conhecido por todos nós a partir desse crime cometido contra ele. Eu queria que tu falasse um pouco sobre quem ele era.
Eu gosto muito dessa oportunidade, porque antes de o Dom ser jornalista, ele era humano. E eu sou super suspeita para falar, mas ele era um cara muito legal, muito legal mesmo. Ele não era só o tipo de jornalista que coletava informações. Ele se importava realmente com a história das pessoas, o que as pessoas estavam passando.
O Dom conversava tanto com líderes comunitários, indígenas, cientistas, como conversava com os fazendeiros que destruíam, conversava com os garimpeiros. Tentava entender a escolha daquela pessoa para estar numa atividade ilegal. E chegava sempre de uma maneira muito humilde.

E outra coisa é que o Dom era muito conectado à natureza. Esse tema de proteger a Amazônia era uma paixão dele, genuína. Não é só porque é uma tendência, não é só porque a gente está vivendo um momento em que é óbvio que a gente tem que olhar para esse problema. O Dom era essa pessoa conectada, e ele voltava da Amazônia muito impressionado. Toda vez que ele fazia uma viagem, ele voltava com os olhos brilhando. Então, eu acho que isso faz grande diferença para o trabalho dele, especialmente no livro.
Vocês já estavam juntos quando ele passou a se interessar pela Amazônia e teve a ideia para este livro. Como foi esse processo?
O livro é uma ideia que ele foi amadurecendo durante os anos. Ele me falava que quando ele fazia pesquisas sobre a Amazônia, ele encontrava os escritores falando sobre destruição, desmatamento, violência, mas não falavam que também tem um outro lado, de resistência, de quem está na linha de frente defendendo seus territórios, dos cientistas que estão desenvolvendo projetos que regeneram, que protegem.
Então ele quis mostrar também gente que trabalha para proteger a Amazônia, inclusive para dar esperança para quem está aqui do outro lado.
Acho que a mensagem do livro é bem essa: todo mundo pode fazer alguma coisa. Você tem que descobrir o seu papel.
E eu acho que, de uma maneira geral, a mensagem que ele deixa é de que a gente tem que se unir.
Por exemplo, o seu consumo particular é importante, mas não é suficiente para resolver algum problema. Você tem que saber o que você consome, mas é a pressão em cima de leis, do governo e das grandes companhias, é essa pressão que um cidadão pode fazer junto com outros cidadãos que vai fazer a diferença.
O título do livro é, no mínimo, ambicioso. A pergunta que ele propõe tem resposta?
O título do livro é bem provocativo de propósito, né? "Como salvar a Amazônia" é uma afirmação e é também uma pergunta. Eu acho que é um convite para o leitor se aproximar desse tema, entender melhor a complexidade que tem a Amazônia, que não tem uma solução única, tem que ter várias frentes sendo articuladas a nível governamental, a nível civil, a nível econômico, das grandes companhias.
Eu gosto de contar essa história de que quando ele conversou sobre a ideia do livro com Beto Marubo, que é uma das lideranças da Univaja, a organização que representa os indígenas do Vale do Javari, o Beto falou: "Ô gringo, que história é essa? Tu é muito prepotente, tu é gringo, não sabe nada da Amazônia, o que é que tu tá falando?". Aí o Dom falou: "Tá vendo, Beto? É essa a reação que eu quero. E eu não quero indiferença, eu quero que as pessoas fiquem curiosas, fiquem indignadas, porque eu sou um gringo, mas a ideia do livro não é eu trazer soluções, é eu ser esse canal".
E, na verdade, o que eu acho que é a grande diferença, o pulo do gato desse livro, é que o Dom coloca como protagonistas para falar sobre como salvar a Amazônia os próprios amazônidas. Quem tá lá, nesse esforço diário, contínuo e pesado de proteger e de regenerar. Essas pessoas são efetivamente as que dependem e são as que protegem a floresta pra gente ter benefício aqui, no Sudeste, no resto do Brasil, na América Latina e no mundo.
Eu acho que ele estaria super feliz porque esse livro resume bem, coloca na prática o que ele fala na introdução, que é somente o pensamento coletivo e comunitário que pode salvar a Amazônia. Então, eu acho que esse livro é fantástico.
Os jornalistas tiveram muito respeito com o material que o Dom deixou. Fizeram uma campanha de arrecadação de dinheiro, para que alguns deles pudessem fazer as mesmas viagens que o Dom fez, seguindo os caminhos que ele seguiu, entrevistando as mesmas pessoas, para seguir ao máximo possível as ideias do Dom.
O livro foi escrito, originalmente, em inglês?
Exato, sairia no mercado do Reino Unido. Não sairia, por exemplo, em português, a princípio. E aí, por conta dessa reverberação toda, chegou num alcance esse caso que até hoje me surpreende um pouco.
Às vezes me assusta, porque, se você fala no nome do Dom e do Bruno com alguém de uma comunidade tradicional, as pessoas têm um respeito, porque o Dom e o Bruno são vistos como caras que foram guardiões da floresta e seguem sendo. E eu acho isso muito bonito.
As pessoas foram muito tocadas pessoalmente por esse caso, e eu acho que isso gerou também tanta curiosidade, de querer saber, de querer ver o livro.
Não dava para deixar essa história sem contar, né? Porque teriam silenciado tanto o trabalho do Dom quanto do Bruno.
Eu cheguei a conversar com alguns editores, talvez a gente encontre algum editor em outros países, por exemplo, no castelhano, no espanhol, que é importante também, porque a gente tem a Amazônia presente em nove países latino-americanos. Vamos ver.
No dia em que o crime completou três anos, foi indiciado o homem apontado como mandante. Embora os três principais suspeitos estejam presos, ainda não houve condenação. Qual a tua avaliação do trabalho da polícia e do processo judicial sobre o caso?
Eu tento não criar uma expectativa muito grande com relação ao tempo em que isso vai acontecer. Eu não gosto de antecipar nada. Eu não acompanho muito diretamente, eu sei das notícias, mas, assim, os detalhes ainda é muito duro acompanhar. Então, eu estou um pouco esperando quando esse julgamento vai ser marcado para entender e me aprofundar no assunto.
Sem dúvida, toda família que perdeu uma pessoa que amava num caso assim tem pressa, né? A gente quer ver a coisa resolvida. Mas os meus advogados me falam que está correndo bem. Então, eu fico sendo orientada por eles.
Agora, várias pessoas até me perguntam: "O que é a justiça para você? O que é a justiça para esse caso?". É difícil falar assim porque nada vai trazer eles de volta. É conviver com essa perda.
Mas quando eu falo dessa perda, eu também fico muito angustiada com as pessoas que ainda são ameaçadas. No Javari, você tem gente que ainda está sob proteção do Estado, porque ainda é ameaçada.
Tem um incremento ali das atividades ilegais, combinadas com o narcotráfico. Precisa de presença do Estado nesses lugares para as pessoas poderem viver suas vidas, sabe?
Então, para mim, a justiça vai muito além só do caso. Tem muita violência ali, isso precisa ser exemplarmente mostrado, de que vai ter consequência por um ato desse. Mas é muito trabalho a ser feito aí, sabe? Muito.

Inclusive, indígenas, hoje ainda, quando eu vou no Javari, me abraçam, choram e pedem desculpa por não terem conseguido proteger Dom e Bruno. Eu falo "a culpa não é de vocês", mas eles carregam essa culpa, alguns deles. Então, que violência é essa toda, que reverbera tanto?
Como tem sido a tua vida desde o ocorrido?
Agora eu me dedico 100%, eu sou responsável pelo legado do Dom. Ele deixou isso em testamento. E eu sigo também com o Instituto Dom Philips, que a gente abriu há um ano e o foco é reverberar as vozes da Amazônia, conhecimento ancestral que tem aí, também de todos os defensores da floresta e dos povos, da cultura, mas isso através de um viés educacional.
A gente já está trabalhando com jovens, novas lideranças. O que eles querem? Que a gente tenha uma educação de qualidade. Isso é uma demanda deles, não é ideia nossa, não.
Eles querem estar nesse lugar de decisão, porque eles já sabem o que eles querem. Eles sabem como proteger e eles estão vendo que eles estão só apagando o fogo quando o fogo já começou.
Eu acho genial isso, sabe? Tem muita gente capacitada.
Eu acho que sempre foi deles e a gente nunca reconheceu. Agora, eles, mais do que nunca, lutam para estar nesse lugar. A gente merece que eles estejam.
Não são eles que merecem. É a gente que merece que eles estejam para enriquecer mais ainda a nossa sociedade.
Agora convivendo nesse mundo amazônico, eu estou atravessada por um encantamento, sabe, cada vez eu me sinto mais pertencente a essa parte do nosso país que ainda é tratada como um apêndice, mas que é uma parte fundamental, uma das maiores riquezas que a gente tem. E eu não falo de riqueza de recursos, eu falo de cultura, de história, eu falo das pessoas.
A gente tem que parar de olhar a Amazônia como uma fonte de recursos a ser explorada. É muito além disso, ela vale muito mais ficando protegida, estando de pé. A gente ainda vai descobrir muito sobre a Amazônia. Tomara que a gente descubra antes de destruir ela completamente.