
O Rio Grande do Sul chega às vésperas do Dia Nacional da Adoção, celebrado em 25 de maio, com 588 crianças e adolescentes aptos a serem adotados e 3.244 pretendentes ativos, ou seja, pessoas que já estão aprovadas e aguardando a sua vez de se tornarem pais e mães. De acordo com esses dados, levantados do Sistema Nacional de Adoção (SNA) na terça-feira (20), matematicamente não deveria haver nenhum menor à espera, mas a realidade não é exata. A promotora da Infância e da Juventude de Porto Alegre Cinara Vianna Dutra Braga, 54 anos, explica o porquê.
O perfil desejado por quem se habilita a adotar, que exclui nada menos do que 95% dos meninos e meninas disponíveis, por serem maiores do que seis anos, e a morosidade do sistema, que passa pelas limitações estruturais do Estado, estão entre as principais razões de um processo que é lento e, por isso, reduz as chances de quem luta contra o tempo para se colocar em lar definitivo.
Dados do SNA mostram 3.916 acolhidos e apenas 588 aptos para adoção no RS. Qual a diferença entre eles e por que essa disparidade tão grande?
Quando uma criança está em situação de risco e o Conselho Tutelar é acionado, aplica medida protetiva. Não resolvido o problema, faz uma representação ao Ministério Público. Chegando à conclusão de que se a criança permanecer com a família pode vir a óbito, o MP ajuíza uma ação de acolhimento. Acolhida, se essa criança é órfã de mãe e pai, já pode ir para uma família substituta. Mas se ela tem a mãe e o pai, ou apenas um deles, para que possa estar apta a adoção tem de haver uma destituição do poder familiar. É aí que começa a questão da demora. Porque o Estatuto da Criança e do Adolescente preconiza que a gente tem que exaurir todas as opções dentro da família.
A adoção não demora. O que demora é a criança estar apta a ser adotada. Tem que ser célere o diagnóstico de que ela não tem condições de voltar para a família de origem.
Onde está o gargalo que impede essa celeridade?
Cada Juizado da Infância e Juventude tem que ter uma equipe completa com juiz, promotor, defensor, técnicos, psicólogos, assistência social para que o processo ande. O processo vai tramitar se o MP ajuizar. E o MP só vai ajuizar quando chegar a informação das equipes técnicas, das casas-lares, dos abrigos, dizendo que realmente foram exauridas todas as tentativas. Em Porto Alegre, por exemplo, o segundo juizado da Infância e Juventude tem três juízes com seis promotores tratando da matéria. Então, a Capital foge da média, são 18% de crianças aptas à adoção (no Brasil, são 15%, no RS, 14%), e ainda é pouco. Mas você pega a Grande Porto Alegre, não tem psicólogo, nem assistente social. E aí o processo não vai tramitar como tem que ser. Isso é bem ilustrativo.
Muito me angustia a não tramitação das ações de destituição do poder familiar no tempo devido. Se a gente conseguisse mais juízes, mais promotores, mais defensores, equipes técnicas, funcionários, claro que tramitaria de forma mais rápida. O Estatuto da Criança e do Adolescente fala em 120 dias. Eu não vi ação de destituição tramitar em menos de um ano.
Mas também há uma questão subjetiva de entendimento dos agentes sobre até onde ir para recolocar essa criança na família para fazer o processo fluir, não?
Por isso eu digo que é muito da cultura e da sensibilidade do promotor de Justiça entender quando é hora de entrar com a ação de destituição. Acontece de chegar o parecer e ainda assim tentarem mais um parente distante. Então, por exemplo, a criança recém-nascida não tem vínculo com ninguém, por enquanto. Mas em vez de colocarem direto no Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento, ficam fazendo contato com um primo que nem a conhece. O que é mais interessante: você ser o filho amado por adoção ou você ser o primo pobre que tá lá por caridade?
O RS tem 5,5 pretendentes ativos para cada criança ou adolescente apto à adoção. No Brasil, são 6,6 por 1. O perfil do filho pretendido ainda é determinante para o tempo de espera na fila?
Se você pretende uma criança com 10 anos ou mais, você não tem fila. Porque ninguém quer. Todo mundo quer de zero a seis, e o tempo de espera para essa criança é em torno de três anos e meio. Então, hoje, você só vai ter criança de zero a seis anos em acolhimento se for com um problema sério de saúde ou um grupo muito grande de irmãos. Mas, do total de crianças aptas a adoção, apenas 5% estão dentro desse perfil. Por isso a gente vem reiteradamente trabalhando a questão da adoção tardia, temos o aplicativo Adoção RS, temos a busca ativa, promovemos eventos para lançar luz a esse tema e oportunizar que essas crianças e adolescentes sejam vistos e lembrados.
Quando falamos na adoção de crianças maiores e adolescentes, um ponto sensível e grave são as devoluções.
É muito triste pensar nisso. E por que tem acontecido? Porque se antes a gente adotava só bebês, e bebês só vão apresentar problemas mais adiante, agora, por conta dos projetos de adoção tardia, a gente tem colocado crianças que têm uma bagagem. E aí entra a questão do mal preparo dos habilitados. A criança tem um histórico, que precisa ser conhecido e respeitado, e e quem está se habilitando tem que se preparar para saber lidar com isso. A gente vê motivo fútil como devolver porque a criança não vai bem na escola.
Mas qual o acompanhamento e o suporte que o Estado oferece a famílias quando levam seus filhos para casa?
O Estatuto da Criança e Adolescente preconiza que os habilitados têm que ter preparo, inclusive contato com as crianças e com as equipes que trabalham no acolhimento. Hoje nós temos um grupo de apoio à adoção, que, em parceria com o Poder Judiciário, promove encontros virtuais, em que os problemas são apresentados, a fundamentação. A participação é obrigatória, é uma preparação. Se você não participa dos encontros, não vai para a etapa seguinte.
Depois da sentença de adoção, não há um serviço de pós-adoção. Esse é um ponto a ser melhorado, porque os pais são orientados a procurar o juizado da Infância e Juventude se tiverem problema. Só que os problemas acontecem no dia a dia, e as pessoas não procuram. É preciso um acompanhamento pós-sentença de adoção, para todos.
Quais os requisitos para se habilitar à adoção?
O importante é querer formar família. Pode ser casado, solteiro, ter orientação heterossexual, homossexual, pode ter união estável, estar em uma relação homoafetiva, nada disso é problema. O que a gente vê mais entre os habilitados são casais homoafetivos, e isso cresceu de um tempo para cá, culturalmente isso mudou, o que é uma coisa muito boa. Porque antes havia uma ideia equivocada de que não seriam aceitos. Sobre renda, se você está se habilitando para uma criança, é considerado o suficiente para manter uma criança. E o interessante é que geralmente pessoas com menor poder aquisitivo são as que mais adotam. Pessoa com deficiência física também pode. Tivemos casos já de cego, de surdo, de pessoas com deficiência motora, não é problema. Mas, claro, você não pode ter uma deficiência que te impeça de dar todo o cuidado para uma criança, um adolescente.
É importante falar sobre a entrega voluntária, e o direito da mulher que não deseja ficar com o filho. O que ela pode fazer e como?
É muito importante reforçar que isso não é crime. Não precisa justificar nem sequer precisa dizer quem é o pai. Nesses casos, ela abre mão do poder familiar e pulamos a etapa de tentativas de reinserção familiar, o bebê vai direto para o primeiro habilitado da fila de adoção. A orientação é para que ela faça o pré-natal e, quando der a luz na maternidade, informe que não tem interesse na maternagem. A assistência social vai orientar bem essa mãe, que pode estar no estado de puerpério. Se for por questão financeira, temos a obrigação de dar um suporte, porque não é por falta de dinheiro que não vai ser mãe. Se ela permanecer com a intenção, a maternidade faz contato com o Poder Judiciário, que agenda uma audiência. Ela confirmando a intenção, tem 10 dias para direito de arrependimento. Decorrido esse tempo, acabou. Essa criança vai para uma família.
O que te frustra e o que te emociona na rotina de um trabalho que transforma e, mais do que isso, salva vidas?
O que me indigna permanentemente é saber que crianças não estão em uma família porque os processos não tramitam como deveriam. Eu fico indignada também de saber que tem crianças que estão passando muitas violências e que poderiam estar em proteção se houvesse denúncia. E é importante que se diga, tanto pelo site do MP quanto pelo Disque 100, você não precisa se identificar. Por outro lado, é tão bom saber que você auxiliou na formação de uma família. E que você pôde contribuir para a qualidade de vida deles.
Essas crianças estão tendo afeto, são tantos os exemplos. Geralmente vem à tona o que não dá certo. Mas a grande maioria dá muito certo. E é muito lindo.