
Um mesmo problema atinge famílias que perderam casas na enchente e governantes que prometem novas moradias de forma rápida: a falta de imóveis disponíveis.
Para se ter uma ideia, só o programa Compra Assistida tem 7 mil famílias habilitadas a receber do governo uma unidade de até R$ 200 mil, enquanto os imóveis ofertados no site da Caixa Econômica Federal são, atualmente, apenas 669.
Mesmo com a ressalva de que o interessado pode apresentar para aquisição uma casa ou apartamento que não esteja listado no site, a conta não fecha.
Recém-habilitada no Compra Assistida, a aposentada Rosa Terezinha Maciel Macedo, 66 anos, ainda aguarda a definição de onde irá viver.
— Uma casa que dê para mim, está muito difícil. Porto Alegre não tem, eu já olhei. Não tem — diz a moradora da Ilha da Pintada, uma das regiões mais afetadas pela cheia em Porto Alegre.
Sair da Ilha da Pintada será para Rosa um passo para esquecer as cenas da enchente. Mas, entre o que faz questão de carregar junto e não esquecer, estão cartas que recebeu dentro de sacolas de doações oriundas de Santa Catarina. A assinada por Cecília está fixada na porta do quarto:
— Eu achei aquele bilhete tão legal que botei na porta do meu quarto. Cada vez que eu entro, eu leio: "calma, Deus está contigo". Aquele bilhetinho foi para mim uma coisa gostosa, que me acalmou, e ele ficou.
A entrega de moradias aos atingidos pela enchente é um dos eixos de acompanhamento do Painel da Reconstrução, ferramenta desenvolvida pelo Grupo RBS para monitorar as ações voltadas à retomada do Estado.
Os números do Compra Assistida
Dados da Secretaria para Apoio à Reconstrução do RS indicam que a necessidade de unidades habitacionais hoje no Estado é de 17,4 mil (entre demandas ao governo federal e ao governo do Estado), um dado que ainda deve aumentar, já que prefeituras seguem fazendo cadastros de pessoas que precisariam de nova residência.
Só em Porto Alegre, em abril, nos últimos três dias do prazo final para solicitação de laudos de imóveis atingidos pela enchente, 700 pessoas contataram o Departamento Municipal de Habitação (Demhab) para pedir vistoria.
— O mundo ideal era ter 20 mil imóveis prontos para serem comprados — diz o deputado federal Paulo Pimenta, ex-titular da pasta e que acompanha o tema da reconstrução em comissões junto à Câmara dos Deputados.
Além da falta de oferta, ainda há os entraves da burocracia documental: o imóvel precisa se enquadrar nas exigências da Caixa, como ter Habite-se e nenhuma pendência tributária ou judicial. Desde o lançamento do site para que proprietários e imobiliárias ofertassem imóveis, 429 já foram rejeitados e apenas 251, contratados.
Até 12 de abril, 1.728 famílias haviam recebido imóvel comprado pelo governo federal pelo Compra Assistida.
Peculiaridades e limitações dificultam entregas
Outro desafio que joga pessoas da fila do programa para a fila de espera por um imóvel novo, que ainda será construído no Minha Casa, Minha Vida Reconstrução, surge a partir das peculiaridades de cada família. Um dos maiores impasses é deixar de viver em uma casa para se instalar em um prédio de apartamentos.
E não é apenas por "mania", como alguns podem pensar. A mudança envolve detalhes que pesam também no bolso, como é o caso de Rosa Terezinha.
— Eu ganho salário mínimo, não posso colocar um condomínio (taxa condominial) nas minhas costas, se não, não vou comer. Condomínio, água e luz vai todo salário. Está difícil, não tem casas. Em Porto Alegre, não tem. E, quando tem, é em lugar longe, perigoso. Meu desejo é ir para a praia, pegar em Tramandaí — explica.
Além de uma vida toda habitando casa, Rosa tem outras limitações diante da possibilidade de ganhar um apartamento.
— Tenho problema nos joelhos, não dá para pegar apartamento com escadas. Tu só consegue apartamento do terceiro andar para cima e sem elevador.
O secretário de Apoio à Reconstrução, Maneco Hassen, admite as dificuldades.
— Quase 100% de quem foi atingido vivia em casa, não apartamento. Tinham pátio, com animais de criação ou estimação. É uma nova realidade. Também tem quem vivia em área irregular, sem pagar IPTU, água e luz, muitas vezes. Agora, tem que ir para uma moradia regularizada, com todas essas taxas. É uma dificuldade, e a questão desses pagamentos acaba sendo empecilho para algumas pessoas — avalia Maneco.
Programa tem prazo para definição de imóvel
No caso do Compra Assistida, quem estiver habilitado e não escolher um imóvel em até 60 dias, perde o direito e passa a compor a fila dos que aguardam imóveis que estão sendo construídos por meio de outras iniciativas dos governos. Pela portaria que o criou, o programa tem 18 meses de validade. Será extinto em 5 de dezembro de 2025. Segundo Maneco, quem se habilitar até lá e escolher um imóvel dentro dos 60 dias, será beneficiado.

Com trauma do noticiário depois da enchente, Rosa não tem mais TV nem acessa sites de notícias. É abastecida de informações de utilidade pública por uma vizinha. E foi pelo grupo de WhatsApp criado por uma moradora para distribuir informações de benefícios pós-enchente que ela soube que estava contemplada no Compra Assistida. Nascida e criada na Ilha da Pintada, Rosa perdeu o apego pelo lugar.
— Se eu pudesse sair hoje da ilha, eu sairia, e olha que aqui tudo é parente e amigo, conhecidos. Mas isso, para mim, não importa mais. O que importa é uma casa onde eu me sinta bem, segura. Criei dois filhos sozinha e tudo que eu tinha eu consegui com o meu suor, não foi ganhando, não foi pegando auxílio de governo, nada — lamenta a aposentada.
Nessa enchente, eu perdi tudo. Não quero sentir essa sensação de novo, quero começar uma vida, me sentir segura. É só isso que espero do nosso governo.
ROSA TEREZINHA MACIEL MACEDO
Aposentada, 66 anos
Um ano depois, famílias ainda aguardam vistoria
Em meio à correria de famílias em busca de um laudo estrutural que possa ajudar a garantir uma moradia nova, a copeira Liane Patrícia Pires Rodrigues, 37 anos, enfrenta um drama: não tem casa para mostrar na vistoria.
A água que invadiu o bairro Navegantes, em Porto Alegre, comprometeu as paredes de madeira da morada que ela mantinha nos fundos da casa do pai e dos irmãos. No pátio, restaram tábuas apodrecidas.
Na terça-feira (13), Liane recebeu a visita de uma equipe do Demhab. Ela foi uma das pessoas que procuraram o órgão ao saber do anúncio de prazo final para fazer o pedido na Capital, estipulado para 30 de abril. Conforme a pasta, foram feitas 850 solicitações, sendo 700 nos últimos três dias de abril.
Sobre o motivo de só pedir a visita uma ano depois da enchente, Liane explicou:
— Eu achei que já estava cadastrada, inscrita. O Demhab tinha vindo aqui ano passado, mas só olhou a casa da frente. Daí, quando fui consultar agora, descobri que não estava inscrita e fiz o pedido.
Liane mora há 20 anos no local. Vivia na casa da frente com os pais e os irmãos. Em 2016, se instalou nos fundos. A água que tomou conta do local a partir do começo de maio estragou tudo que havia dentro. As tábuas das paredes apodreceram e tiveram de ser retiradas para evitar um acidente. Não sobrou nada, e Liane voltou a morar na casa do pai com a filha de nove anos.
Quando o engenheiro civil Rodrigo Fabiano Montemezzo começou a questionar sobre a disposição das peças da casa, Liane ficou nervosa. Não tinha nada para mostrar. Ele explicou da dificuldade desse tipo de situação perante a análise da Defesa Civil Nacional.
— É preciso ter comprovação do antes, de que havia uma casa ali. Quando a casa está totalmente destruída, fica mais difícil — comenta Montemezzo.
Mas no caso da copeira, surgiu esperança. Ela conseguiu recuperar imagens e juntou ao processo no Demhab. Em aproximadamente 70 dias, já deve ter resposta da Defesa Civil.
— Eu fico chateada, espero que dê certo. Quero comprar um guarda-roupas, tirar as roupas de caixas, arrumar as coisas da minha filha — desabafa Liane.