
Água é assunto de segurança nacional na Holanda. Com cerca de um terço do território abaixo do nível do mar e alvo de três grandes rios europeus, o país acumula mil anos de traumas, conhecimento e resiliência sobre as águas.
Desde 2015, o país tem uma autoridade nomeada Special Envoy for International Water Affairs for the Kingdom of the Netherlands (Enviada para Assuntos Internacionais da Água). No cargo há dois anos, Meike van Ginneken trata das relações hídricas com o resto do mundo — incluindo a delegação do Rio Grande do Sul, com quem se encontrou em Haia em fevereiro deste ano.
Ao Retoma RS, ela fala sobre sistemas de defesa contra cheias que podem inspirar ações gaúchas.
Como a Holanda lidou historicamente com enchentes e quais as mudanças de pensamento nos últimos anos?
A Holanda chegou há mil anos à conclusão de que a prevenção de enchentes precisa ser feita coletivamente. Então, criamos nossas autoridades de água para trabalharem juntas na proteção, unindo fazendeiros, cidadãos, indústria, governo e setor privado. Outro princípio muito importante é que trabalhamos com a natureza. Sempre tivemos que lidar com toda a água vinda da Alemanha, da França e da Bélgica. Tradicionalmente, nos concentrávamos em drenar a água o mais rápido possível. O que mudou é que percebemos que isso não é mais possível. As descargas de água são maiores por causa das mudanças climáticas e por causa da mudança no uso do solo. Há mais áreas pavimentadas. O que mudou é que agora trabalhamos mais com a natureza. Damos espaço aos rios. Estamos restaurando áreas de banhado porque queremos armazenar parte da água perto de onde a chuva cai, e não deixar para drenar essa água depois.
Quais são os equipamentos de infraestrutura mais importantes para proteger a Holanda de enchentes?
Temos três tipos de enchentes na Holanda e eles interagem. O primeiro vem do mar, especialmente com o aumento do nível. Então, temos o Delta Works, a infraestrutura que protege nosso delta baixo das enchentes do mar. O segundo é dos nossos rios, e para eles temos muita infraestrutura de diques e bombeamento de água, além de áreas onde o rio pode realmente inundar sem nenhum dano. E o terceiro tipo de inundação é a pluvial. Para isso, temos infraestrutura, como a drenagem nas cidades. Você precisa tirar a água das ruas o mais rápido possível.
E como são mantidos?
Há diferentes partes do governo envolvidas. Nosso governo central é responsável pela proteção contra inundações do mar porque é uma área de segurança nacional. Para os rios maiores, é o governo central e, para os rios menores, nossas autoridades (locais) de água. E para nossas águas pluviais, são frequentemente os municípios.
A chave de um bom sistema de governança e de boa operação e manutenção é que cobramos impostos para as nossas autoridades de água e para os nossos municípios, impostos que realmente sustentam a manutenção e operação.
O Rio Grande do Sul tem menos dinheiro do que a Holanda para sistemas de defesa. O que fazer?
A gestão da água é cara, sabemos disso. Na Holanda, gastamos cerca de 8 bilhões de euros por ano em gestão e serviço de água. São cerca de 500 euros per capita por ano. Acho que é acessível a outros países, mas você precisa fazer um bom planejamento. Cada decisão de investimento é, na verdade, uma decisão com perdas e ganhos. Então, o que você protege primeiro? E outra coisa: você precisa fazer bem a manutenção da sua infraestrutura porque senão ela se torna muito cara porque você tem que reconstruí-la a cada poucos anos.
Qual é a medida mais barata e eficaz para prevenção de enchentes?
Acho que a chave aqui é trabalhar com a natureza, viver com a água, ver onde você pode armazenar. Para onde ela quer ir no seu sistema fluvial? Há áreas onde você pode realmente armazenar temporariamente sua água antes que ela inunde a cidade? A partir disso, o resto de sua infraestrutura se torna mais barata porque você não precisa construir diques tão altos. Realmente esse planejamento espacial e pensar sobre todo o sistema em vez de peças individuais é fundamental para a melhor e mais barata gestão de água.
Na Holanda, o tratamento da água e do esgoto está relacionado à prevenção de inundações? O sistema é público ou privado?
Como no Brasil, temos concessionárias de água, e são de propriedade dos municípios. Por outro lado, temos nossas autoridades de água, que são uma camada especial do governo e responsáveis pela proteção contra inundações e pela qualidade da nossa água. Isso significa que elas também gerenciam a estação de tratamento de esgoto onde as águas residuais estão sendo tratadas para que a qualidade da água em nossos lagos e rios permaneça boa.
Todo o nosso sistema de água na Holanda é público. Todas as nossas autoridades são públicas. Isso não significa que essas autoridades públicas não trabalham com setores privados, que são parceiros importantes.
O setor público está no comando, mas trabalha em estreita colaboração com o setor privado e nossas universidades.
Como funciona o sistema da Holanda de participação da população nas decisões sobre a água?
A parte central para a proteção contra enchentes na Holanda são as nossas autoridades de água. E essas autoridades são, na verdade, uma camada separada de governo. Então, temos municípios, temos províncias, temos o governo central, mas nossas autoridades de água são uma camada própria de governo na qual a população vota. Nossas autoridades de água têm um conselho de água, e os cidadãos votam diretamente no conselho de água a cada quatro anos. Você também paga impostos para o conselho de água. Então, é tributação com representação. Esse conselho de água toma as decisões sobre quão altos são os impostos, qual é o nível de serviço, qual o plano anual da gestão. Assim, temos uma gestão democrática da água na Holanda.
O que significa adotar uma cultura de prevenção sobre enchentes?
Acho que a coisa mais importante é que como governo, mas também como população que elege esses governos, são decisões sobre dinheiro. É a decisão de cada cidadão pagar seus impostos para proteção contra enchentes, para qualidade da água etc. E é decisão das autoridades investir em infraestrutura e em outras soluções para prevenir, em vez de acabar com tudo isso. Estamos sempre buscando cortar orçamentos de diferentes governos, mas então você enfrentará custos enormes no momento que houver uma inundação. Então, muito disso tem a ver com garantir que a conscientização sobre o risco de viver em um delta se traduza em sistemas de governança fortes e em investimentos em infraestrutura e outras soluções.
O que significa, na prática, reconhecer as mudanças climáticas?
As pessoas comuns sentem a mudança climática através da água porque a casa inunda ou porque as chuvas chegam tarde e há quebra na colheita. Precisamos nos adaptar à mudança climática. É uma necessidade de agora. Primeiro, usar a melhor tecnologia e engenharia. Segundo, precisamos restaurar e proteger nossos ecossistemas onde armazenamos nossa água, nossos banhados, lagos, rios, porque esses são nossos melhores amortecedores. E a terceira coisa é tornar a água um princípio orientador em nosso planejamento espacial e econômico. Precisamos perceber que nem tudo é possível de se instalar em todos os lugares. Portanto, as soluções para a adaptação climática têm a ver com a água, mas vão além do setor hídrico.
Como as diferenças culturais e geográficas entre a Holanda e o Rio Grande do Sul afetam a prevenção de enchentes?
Somos parecidos em alguns aspectos, não? Porque ambos têm áreas baixas. Eu também acho que ambos são áreas bem urbanizadas, embora a densidade da Holanda seja bem maior do que a do Rio Grande do Sul. Há diferenças na estrutura das cidades. As nossas são mais planejadas, enquanto a cidade de Porto Alegre e outras no Rio Grande do Sul cresceram mais organicamente. Nossos sistemas de governança também são diferentes. No Brasil, você tem um sistema federalista, nós temos um governo unitário. Então, há diferenças e similaridades. Você não pode copiar soluções de um país para outro, mas pode se inspirar. E você pode usar os especialistas de um país para pensar junto com outro país.
Remover populações é uma solução eficaz? Em que situações?
Acho que remover a população sempre precisa ser o último recurso. As pessoas vivem por gerações, por séculos em seus lugares e removê-las é horrível. Se as suas cidades crescem, pensar para onde vai a nova população é um tópico mais importante. Pensar no planejamento espacial, nos movimentos populacionais, no planejamento econômico, onde você coloca suas fazendas, onde você coloca suas indústrias é realmente importante. Se realmente há populações que estão em alto risco e vivem em lugares onde a proteção contra enchentes é simplesmente inacessível, primeiro você precisa discutir isso bem, consultar essa população, precisa haver consenso e, então, claro, se for necessário, como último recurso, precisa ser feito.
Os cientistas pensam em uma frequência e os políticos em outra. Assim, frequentemente, as decisões políticas não seguem as recomendações dos cientistas. Como conciliar isso?
Sim, acho que na Holanda trabalhamos muito com cientistas, engenheiros e formuladores de políticas públicas juntos. É preciso convencer os políticos a pensar além dos seus mandatos. Gestão de água é um planejamento de longo prazo. Você não precisa pensar nos próximos quatro anos ou nos próximos dez anos. Você precisa olhar 50 ou 100 anos à frente. E criando essa cultura política, você sempre vai inaugurar a infraestrutura que seu antecessor ou seu ante-antecessor começou. Então, esse pensamento de longo prazo é algo realmente importante e os cientistas podem realmente ajudar a informar a arena política sobre isso.