Uma decisão inédita da Justiça de Santa Maria tem muito a ser comemorada. Na segunda-feira, o Poder Judiciário deferiu uma medida protetiva em favor de uma transexual. A jovem, que tem 20 anos e conseguiu a redesignação sexual aos 16, sofria violência do seu companheiro há pelo menos um ano e meio. Ela já havia procurado a Polícia Civil outras vezes, mas como ainda não tinha a Carteira Social, e a Lei diz que apenas mulheres podem requerer medidas protetivas, ainda não havia conseguido uma solução.
O pedido foi encaminhado pela delegada Débora Dias, titular da Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher (Deam). A decisão foi proferida pelo juiz Rafael Pagnon, titular do Juizado da Violência Doméstica.
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– Ela fez o registro no plantão e, no dia seguinte, veio para cá (Deam). Quando é do sexo masculino, o sistema tranca, a tendência é sempre indeferir esses pedidos, porque, em regra, as medidas são para mulheres. Nunca havia acontecido isso em Santa Maria. Mas o Dr. Rafael tem um comprometimento muito grande com a causa, e isso abre um precedente para outros – comemora a delegada.
O magistrado explica que a decisão é baseada, principalmente, na interpretação de gênero, já que o fato da vítima não ter o órgão sexual feminino não impede que ela se enquadre em um caso de violência doméstica. Quando a relação é entre duas mulheres, por exemplo, não há nenhum impedimento nem sequer para efetuar o pedido.
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– O gênero é muito mais importante que o sexo. O fato dela não ter o órgão genital feminino não impede essa decisão. Outro fundamento adequado é que a lei visa tratar pessoas desiguais. Visa dar uma proteção especial para a mulher, porque ela recebe um tratamento diferente do homem. Então, é para desigualar pessoas desiguais, com isso, igualando-as – explica.
O juiz diz ainda que a decisão deve ser a mesma se chegarem casos parecidos e que os transexuais têm que ter os seus direitos garantidos assim como qualquer pessoa:
– Não me vem na mente outro grupo de pessoas que tenha menos direitos garantidos. São pessoas que estão à sombra da sociedade e que, às vezes, nem trazem esses casos à Justiça porque já têm introjetado uma negativa do Estado em atender os seus direitos. O caminho do Juizado é esse, tutelar um grupo social que é esquecido pelo Estado – conclui o juiz.
"Eu vivia um inferno", diz vítima
A vítima vive como transexual desde os 16 anos. Há três, ela mantinha um relacionamento com esse companheiro, que sempre mostrou ser agressivo. Há pelo menos um ano e meio, ela vivia um verdadeiro inferno, como ela mesmo afirma. Após tentar se separar do companheiro, era agredida e até mesmo mantida em cárcere privado.
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– Como morávamos no mesmo bairro, era difícil escapar. Se ele me via na rua, me puxava pelos cabelos até a casa dele e me deixava presa até por uma semana. Não podia nem sair na frente de casa. Eu tinha muito medo e não queria que tivesse chegado a esse ponto. Mas foi o que ele procurou. Ele infernizou a minha vida – relata.
Ela confirma o que o próprio juiz Rafael Pagnon afirmou que há uma descrença por parte dos transexuais na defesa dos seus direitos.
– Pelo fato de sermos trans, independentemente da aparência, sempre vão dizer que tu és homem. Nós já estamos acostumadas e, por isso, só contamos umas com as outras, temos receio de procurar ajuda. A única coisa que nos impediria é o órgão sexual, porque eu me sinto totalmente mulher. Essa foi a última tentativa e, graças a Deus, deu certo – ressalta a vítima.
Ela espera que a decisão ajude outras trans:
– Por um lado, fico triste de estar passando por isso, mas feliz em ser a pioneira. E espero que outras vejam isso e se inspirem. Tenho duas amigas que passam pela mesma coisa e me disseram: tu achas que vão dar bola para nós? Agora, elas vão ver essa decisão e vão procurar ajuda. Vamos conseguir mudar esse cenário – comemora.