
Da marchinha "Pra frente Brasil", usada para inflamar o ânimo nacional durante a ditadura militar, aos protestos que sacudiram os preparativos para a Copa do Mundo deste ano, a política historicamente entra em campo com a Seleção Brasileira.
Mas até que ponto os resultados desta Copa disputada em solo tupiniquim, com duelos contra e a favor do torneio nas redes sociais, xingamentos à presidente Dilma Rousseff no jogo de estreia - e, ao mesmo tempo, coros de "muito orgulho", "muito amor" (e muito hino à capela) dentro dos estádios - têm poder para interferir nas eleições?
A despeito da crença disseminada de que a vitória da Seleção traria benefícios a quem está no poder, uma análise histórica da relação entre o desempenho nos gramados e nas urnas desautoriza esta versão. Por mais que governantes de diferentes matizes ideológicos tentem se aproveitar da popularidade do esporte, o contexto político da lendária pátria de chuteiras tem se revelado mais independente do que parece, como indica a reeleição de Fernando Henrique Cardoso no primeiro turno em 1998, quando o Brasil perdeu a final da Copa para a França, ou a vitória da oposição meses depois do pentacampeonato, em 2002, com a chegada de Lula ao poder.
Mesmo com o cenário singular de 2014, acirrado pela insatisfação popular com os gastos do Mundial sediado no Brasil, a influência do resultado do torneio na eleição é considerada limitada pela maioria dos especialistas ouvidos por ZH, como o sociólogo Ronaldo George Helal, coordenador do Laboratório de Estudos em Mídia e Esportes da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Para ele, as possíveis consequências no pleito terão mais a ver com a avaliação final da organização da Copa do que propriamente com a quantidade de gols do Neymar.
- Se houver algum fiasco na Copa, a oposição pode usar isso, ou o governo pode se apropriar de uma boa organização. Todo mundo vai querer tirar uma casquinha, mas o Brasil ganhar ou perder não decide uma eleição. O uso político do futebol é antigo, a questão é a eficácia desse uso. Nos anos 70, o regime militar usou muito a imagem da Seleção para legitimar o regime, mas cabe a pergunta: se o Brasil tivesse perdido a Copa de 70, teria sido diferente? Acredito que não. Essa correlação direta nunca existiu - avalia Helal.
Maioria silenciosa
Como nas primeiras duas semanas de Copa a teoria do caos não se confirmou, o cenário também mudou. Depois de assombrado por protestos nas ruas e desacreditado pela famosa hashtag #naovaitercopa nas redes sociais, o torneio vem ocorrendo até agora sem maiores sobressaltos. Com direito, inclusive, a elogios da mídia estrangeira.
- Os brasileiros sempre foram muito preocupados em organizar um evento impecável, mostrar que o Brasil tem condições. Mas essa maioria não se percebia como maioria. Era uma maioria silenciosa, tinha vergonha de colocar bandeira na janela, porque uma minoria conseguiu disseminar um discurso contra o Mundial e os gastos. Quando começou a dar tudo certo na Copa, as pessoas começaram a perder a vergonha. Se o Brasil ganhar, pode melhorar a autoestima do país, mas não é isso que decide a eleição. Se pode amar muito o país e ser contra o governo - completa Helal.
Na avaliação do professor de história do Clio Internacional Daniel de Araujo dos Santos, o futebol continua sendo alvo constante de disputa fora das quatro linhas, e sua relação com a política é tão intensa como na época da ditadura. O que mudou foi a forma como esse elemento da identidade nacional é usado pelo poder.
- Lula e o PT queriam mostrar um Brasil forte e protagonista ao sediar a Copa, enquanto, nos anos 70, Médici queria mostrar que a organização militar gerava vitórias na economia e nos esportes. Hoje o cenário é outro, mas FH recebeu a Seleção pentacampeã como Médici recebeu os campeões do tri. E, naquele tempo, não se poderia ir ao Maracanã e xingar o Médici. O governo continua usando a Copa, mas isso agora é desvinculado da Seleção. Se der tudo certo na organização, o governo ganha. Se der errado, a oposição ganha. Os rumos do evento vão interferir na eleição, não o resultado em campo - analisa.
Ainda assim, num contexto político de insatisfação, cresce o dilema dos torcedores entre torcer ou não pela Seleção, como observa a jornalista Vanessa Gonçalves. Uma das curadoras da exposição Política F.C. - O Futebol na Ditadura, aberta à visitação no Museu da Resistência em São Paulo, ela avalia que, embora vivamos hoje em uma democracia, a situação de dubiedade de sentimentos, provocada pelo conflito entre a paixão pelo futebol e a insatisfação política, encontra paralelo com o período do regime militar.
Torcer e resistir
Ao entrevistar ex-presos políticos exilados fora do país, para um documentário que integra a exposição, Vanessa descobriu algo peculiar: para muitos deles, torcer pela Seleção era uma espécie de ato de resistência. Seria uma forma de mostrar que não deixariam a ditadura arrancar sua paixão pelo futebol.
- Conversei com ex-presos políticos que chegaram no exílio na Argélia um dia antes da final da Copa de 1970. Eles contaram que um quinto dos 40 presos começou torcendo contra a Seleção, mas à medida que o Brasil ia ganhando, todos torceram a favor. Alguns diziam que torciam pela Seleção, não pelo Médici. Hoje, os protestos são contra gastos da Copa, e volta essa dubiedade. Mas foi um pretexto. Se não tivesse Copa, as manifestações iriam acontecer do mesmo jeito - avalia.
Já o professor de História Flávio de Campos, coordenador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Futebol e Modalidades Lúdicas da USP, acredita que, mesmo antes de acabar, a Copa já interferiu nas eleições. Um dos sinais seria o receio sem precedentes dos governistas de comparecerem aos estádios, temendo vaias e xingamentos.
- Nunca vi uma articulação tão intensa entre futebol e política. Na padaria ao lado de casa, no táxi, todo mundo está discutindo política - impressiona-se.
Pela primeira vez, segundo Campos, a nação se divide em duas torcidas: uma a favor da Seleção e outra contra a Copa, que é apelidada por ele de "rubro-negra", por unir o preto dos Black Blocs e o vermelho dos movimentos de esquerda. Reproduzindo a lógica da rivalidade entre os clubes, as duas "torcidas" se retroalimentariam a partir de ganhos e perdas de cada uma.
A despeito da artilharia disparada contra o Planalto pelos manifestantes, o professor ressalta que considera a estratégia equivocada, por entender que a responsabilidade pelos problemas sociais deveria ser repartida com Estados e municípios. E também responsabiliza o setor privado, que teria se acostumado a atrasar a execução de obras públicas para receber aditivos contratuais.
- Vivemos uma plenitude democrática que permite a expressão dos conflitos do país, mas temos dificuldade em lidar com o conflito. Achamos que conflito é sempre o fim do mundo. O principal legado da Copa é o enfrentamento do Brasil diante do espelho - reflete.
O efeito na aprovação dos governos
Pesquisa realizada pelo banco suíço UBS para avaliar macroeconomia e estratégia de investimentos, concluiu que não há relação direta entre o resultado em campo na Copa do Mundo e a avaliação de governantes no Brasil. Quando o Brasil foi derrotado pela França, na final da Copa do Mundo de 1998, por exemplo, a avaliação do governo brasileiro cresceu 7%, enquanto, em 2002, quando o Brasil ganhou o penta, a aprovação caiu 2%. Confira a tabela:
1994: campeão
Mudanças no Índice de aprovação no governo antes e depois do torneio: +21 ponto percentual (aumento de 16% para 37%)**
1998: vice-campeão
Mudanças no Índice de aprovação no governo antes e depois do torneio*: +7 pontos percentuais (cresceu de 31% para 38%)
2002: campeão
Mudanças no Índice de aprovação no governo antes e depois do torneio*: -2 pontos percentuais (de 27% para 25%)
2006: perdeu nas quartas
Mudanças no Índice de aprovação no governo antes e depois do torneio*: -1 ponto percentual (de 39% para 38%)
2010: perdeu nas quartas
Mudanças no Índice de aprovação no governo antes e depois do torneio*: +1 ponto percentual (de 76% para 77%)
*Entre maio e junho
**A comparação de 1994 foi feita entre abril e agosto
Impacto nas urnas
Com base em estudos internacionais, o relatório afirma que a Copa poderia influir se ocorresse até duas semanas antes das eleições. E, mesmo assim, seria um efeito restrito: o governo poderia receber de um a dois pontos percentuais a mais em votos nas eleições.
Como a Copa deste ano acabará quase três meses antes do primeiro turno das eleições, os autores concluem que não terá impacto significativo sobre o resultado.
O mundial na política
Só a partir de 1994 o ano da Copa do Mundo passou a coincidir com as eleições para a Presidência. Nestes 10 anos, nem sempre o título para o Brasil beneficiou as forças políticas de situação.
1958
Contando com Pelé, que despontava como prodígio aos 17 anos, o Brasil venceu pela primeira vez o torneio, na Suécia.
Nessa época, a disputa não coincidia com as eleições nacionais, nem havia reeleição. Vencedor em 1955, o presidente Juscelino Kubitschek recebe a Seleção e tira fotos. Apesar de sua popularidade, Juscelino não fez seu sucessor. O vencedor em 1960 foi o opositor Jânio Quadros.
1962
Com dribles de Garrincha, a Seleção garante o bicampeonato no Chile.
O país era governado desde 1961 por João Goulart, que assumiu depois da renúncia de Jânio Quadros. A vitória não impediu a instabilidade política, que culminaria com o golpe militar dois anos depois.
Ditadura militar
Em vigor entre 1964 e 1985, o regime militar atravessou cinco Copas (66,70, 74, 78 e 82). O Brasil foi tricampeão em 1970.
Sem eleições nacionais durante a ditadura, houve influência militar da comissão técnica da Seleção, e havia incentivo ao culto aos "canarinhos" como forma de promover e legitimar o regime, com propaganda alimentada por marchinhas e frases de efeito, como Pra Frente Brasil. O general Médici, que pouco dava entrevistas, teve imagem popularizada ao aparecer em fotos dentro do Maracanã e ao lado da delegação brasileira. Se a vitória de 1970 ajudou, o jejum de títulos nas Copas seguintes não fragilizou o regime.
1986
Com pênalti perdido por Zico, o Brasil foi derrotado pela França nas quartas de final. O torneio disputado no México foi vencido pela Argentina.
O país era presidido por José Sarney, que assumiu o mandato devido à morte de Tancredo Neves antes da posse.
1990
O Brasil caiu nas oitavas de final, na Itália.
Eleito em 1989, o presidente Fernando Collor de Mello cumpria seu primeiro ano de mandato. Dois anos depois, sofreria um impeachment e seria substituído por Itamar Franco.
1994
A Seleção ganhou o tetracampeonato nos Estados Unidos, com ajudinha do erro na cobrança de pênalti do italiano Roberto Baggio.
As eleições passaram a coincidir com a Copa. O candidato da situação, Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que era ministro da Fazenda no governo Itamar Franco, venceu. O principal motivo da vitória, no entanto é atribuído ao plano Real, que conteve uma inflação de 80% ao ano.
1998
Na França, o Brasil perdeu para os donos da casa na final, que ficou marcada por uma suposta convulsão de Ronaldo.
Fernando Henrique Cardoso (PSDB) se reelegeu no primeiro turno. A estabilidade da economia continuava a ser um trunfo político decisivo.
2002
Com artilharia de Ronaldo na Copa do Japão e da Coreia do Sul, o time do Brasil ergueu a taça do pentacampeonato.
Os governistas não conseguiram capitalizar a vitória no campo político. O PT chegou pela primeira vez ao poder ao vencer o tucano José Serra, que era candidato do presidente FHC.
2006
Brasil perdeu para a França, nas quartas de final, na Alemanha.
A situação venceu, com a reeleição do presidente Lula (PT). Nem as denúncias do mensalão abalaram a popularidade de Lula, ancorado em políticas sociais como o Bolsa Família.
2010
Brasil foi eliminado pela Holanda nas quartas de final, na África do Sul.
A situação venceu. Lula conseguiu eleger sua sucessora, Dilma Rousseff. De perfil técnico, Dilma chegou a ser comparada a "um poste" pelos opositores antes da eleição, mas o carisma de Lula e seus programas sociais garantiram sua eleição.
2014
Apesar do tão falado #naovaitercopa, o torneio é realizado no Brasil - e nas primeiras duas semanas ocorre sem maiores problemas.
A propaganda eleitoral começa no dia 6 de julho. Um ano após os protestos que sacudiram o país, o ambiente político é considerado mais tenso e imprevisível.
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