
Todo dia alguém liga para saber se há novidades, uma pista ou suspeita que possam cessar a agonia que arrasa a família há quase um ano. Mas o telefonema que interrompe a conversa e o chimarrão do final da manhã da última terça-feira, na ampla residência de dois pisos à margem da ERS-240, em Portão, não traz uma voz conhecida ansiada por notícias. É só um inconveniente a atrapalhar uma profunda reflexão sobre a vida, obrigando Delmar Winck, 82 anos, a levantar do sofá. A chamada é abreviada em poucos segundos:
- Agora não tenho condições.
Ao desligar, o aposentado explica que o interlocutor é funcionário de uma empresa de TV a cabo e oferecia a contratação de um plano com mais de cem canais.
- Não quero. Por enquanto, não faço nada dentro de casa. Depois que a minha mulher estiver aí, se ela tiver interesse, a gente faz - afirma Delmar.
Ele é um homem triste, mas a falta de resultados que sustentem a certeza do retorno de Beatriz, 78 anos, não impede que fale com naturalidade sobre o dia em que, acredita, ela habitará outra vez aquela sala, entretida com os rolos de lãs e linhas para as peças confeccionadas em tricô e crochê. Não é simples esperança o que nutre os Winck - eles estão seguros de que a dona de casa será encontrada com vida. Beatriz sumiu em 21 de outubro de 2012, no Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida, em Aparecida do Norte (SP), quando o casal acabara de chegar ao mais importante destino religioso do país em uma excursão.
Delmar viu a mulher pela última vez quando aguardava na fila do caixa da Casa das Velas, perto da basílica, momento em que ela decidiu esperá-lo na porta da loja. Ao concluir a compra de três DVDs, o aposentado se dirigiu à saída. Beatriz desaparecera entre as dezenas de milhares de fiéis que lotavam o pátio do complexo naquela tarde quente de domingo. Começava ali a busca que revirou hospitais, asilos, cemitérios, albergues e conventos de quase 40 cidades da região.
- Às vezes, eu perco a vontade de viver. Já fiz um exame de consciência para ver onde nós erramos. Impossível a gente ter feito algo para merecer isso. Não sinto em mim algo que me leve a tal provação. Sempre levei uma vida muito correta, nunca logrei ninguém, nunca roubei, nunca maltratei - divaga Delmar. - Aguento mediante a fé. Rezo muito. Já não tenho mais objetivos na vida. Meu único objetivo é encontrá-la.
Repousa na mesa de centro um dos 20 mil cartazes com a foto e as características de Beatriz distribuídos pelas comitivas de parentes e voluntários que se dispuseram a ajudar. Uma rasura a caneta revela uma mudança de rumo fundamental, defendida por Delmar e os filhos nos últimos meses.
O aposentado riscou a palavra "desaparecimento", substituindo-a por "rapto". No princípio, pensava-se que a idosa pudesse ter sofrido uma isquemia cerebral devido, entre outros fatores, à falta dos remédios para controlar uma arritmia cardíaca. A consequente perda de memória justificaria a hipótese de que ela teria se perdido ao mergulhar na multidão.
João Carlos, 54 anos, o filho mais velho, hoje acredita que a mãe foi sequestrada. Não quer divulgar detalhes sobre os indícios em que se baseia para não atrapalhar a elucidação do mistério.
- Resgate não precisa ser pedido na hora. Essa pessoa pode querer mexer com os sentimentos da família e esperar o momento certo. Estamos dispostos a negociar. Mas, se não chega uma informação, o que podemos fazer? - questiona o técnico químico. - É um quebra-cabeça que está se montando.
Filho faz investigação paralela
Na Delegacia de Aparecida, não se alcançou qualquer conclusão. O delegado Jair Ramalho refuta a tese de sequestro, amparando-se na declaração de um depoente. Uma das colegas dos Winck no passeio ao santuário garantiu ter passado por Beatriz naquele domingo, e a dona de casa informou que estava indo embora.
- O que é certo é aquilo que, infelizmente, é óbvio: ela desapareceu, mas não existe nada de concreto. Pode ter entrado em um ônibus errado, pode ter saído caminhando - cogita o delegado Ramalho.
O inquérito foi remetido à 4ª Delegacia de Investigação sobre Pessoas Desaparecidas, órgão do Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa, na capital paulista. Maria Helena do Nascimento, delegada titular, afirma que dará prosseguimento às investigações. Um dos primeiros procedimentos será voltar a cruzar os dados de Beatriz com os de mortos sem identificação em hospitais e departamentos médicos legais.
- Não se perde a esperança. Para a família, um ano é uma eternidade, mas Deus ajuda - ensina Maria Helena.
Abastecido com informações de colaboradores na região do Vale do Paraíba, o filho João Carlos vem mantendo uma investigação paralela. Ouviu pessoas de diversos pontos do Brasil relatando terem visto "uma velhinha de cabelo branco" que fotos logo provavam não ter qualquer semelhança com a mãe. Fez o reconhecimento de dois cadáveres, abordou indigentes e usuários de drogas pelas ruas, embrenhou-se em matas, vasculhou até rios - atrás de qualquer coisa.
- Todas as pistas acabaram se tornando furadas. Fizemos papel de bobo muito tempo - lamenta o técnico químico.
O filho credita às raízes germânicas a capacidade de total concentração no objetivo, abafando sua porção mais emotiva. A sequência de fracassos jamais teve poder paralisante: viajou cinco vezes à Capital da Fé. A primeira estada se prolongou por dois meses, e a convicção de que encontraria a mãe era tão sólida que reservou uma passagem no nome dela para embarcar para Porto Alegre na véspera de Natal.
Negando-se a revelar os valores investidos na operação até agora, o técnico químico prefere as comparações: bilhetes aéreos, locação de automóveis e combustível, hospedagem em hotéis e cartazes custaram "um carro importado de alto luxo". Há meses, ele decidiu se preparar para alugar um avião equipado com UTI para o caso de a saúde da idosa estar muito debilitada ao ser localizada. Orçamento: "um carro zero 1.6". Na próxima semana, João Carlos partirá pela sexta vez rumo a Aparecida.
- Vou buscá-la. A certeza de encontrá-la é muito grande. A certeza de encontrá-la este ano é muito grande - salienta.
Marido sonha com ela todas as noites
Outra filha, Flávia, 49 anos, mora a poucos metros da casa dos pais. Lembra do "cheirinho bom de comida" que sentia ao entrar no pátio e da mãe sempre envolvida com algo na cozinha: gostava de preparar massa caseira, assado de porco, chucrute, batata a vapor, compotas de carambola e figo. Flávia recorda com frequência um dos últimos diálogos entre ambas, na véspera da excursão.
- Cuida das minhas flores para quando eu voltar elas não estarem tudo murchas - pediu Beatriz à filha.
- Nossa, parece que vai ficar dois meses fora - respondeu Flávia, sem imaginar o drama que estava por vir.
Flávia auxilia o pai nos afazeres domésticos. Nunca o tinha visto chorar até um ano atrás. Agora a cena é frequente. Em julho, no dia em que o papa Francisco visitou Aparecida, flagrou-o hipnotizado na frente da TV, tentando identificar o rosto da mulher no meio do povo. Procura chamar a atenção quando nota que ele está acabrunhado demais. O abatimento está comprometendo até a aparência:
- Ô, pai, troca o calçado.
- Pra quê? Não faz sentido.
Delmar segue indo à missa toda semana. Aflito com o vazio dos dias, ampliou o rol de crenças: consulta videntes e participa de sessões espíritas. Surpreende-se quando as conjeturas se assemelham: a mulher estaria presa, em lugar incerto, mas bem.
Confessa que o mais difícil são as noites, excessivamente melancólicas. Toma antidepressivos e um medicamento para induzir o sono. De madrugada, tem a impressão de sentir a companheira deitada na cama e acende a luz para se certificar. Ouve até a voz de Beatriz. Sonha com ela todas as noites, repetindo os passatempos preferidos, como passear em Nova Petrópolis e tomar chimarrão. Delmar faz questão de compartilhar um dos enredos mais significativos:
- Eu disse: "Mas como, você já vai? Nem conversamos o suficiente". E ela: "Não te aflige, daqui uns dias eu estou de volta". Estou esperando, né? Faz um mês, isso aí. Contei aos filhos. Ficaram muito admirados. "A mãe vai voltar?", me perguntaram. Vai. Me prometeu. Ela é uma pessoa que cumpre tudo o que promete.
Relembre o caso
Idosa desapareceu enquanto aguardava o marido em frente a uma loja
Beatriz Joanna Von Hohendorff Winck, 78 anos, e o marido, Delmar Winck, 82, moradores de Portão, partiram de ônibus para a segunda visita ao Santuário Nacional Nossa Senhora Aparecida em 20 de outubro de 2012. Chegaram a Aparecida do Norte (SP) no dia seguinte.
O casal fazia compras na Casa das Velas, loja ao lado da basílica. Delmar se dirigiu ao caixa, enquanto Beatriz resolveu aguardá-lo na porta. Em poucos minutos, o marido concluiu o pagamento e se dirigiu à saída. Beatriz já não estava mais lá.
Familiares e voluntários já percorreram cerca de 40 cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, distribuindo 20 mil panfletos com a foto e a descrição das características físicas da dona de casa.
O trabalho da Delegacia de Aparecida foi inconclusivo. O caso agora será conduzido pela 4ª Delegacia de Investigação sobre Pessoas Desaparecidas, com sede na capital paulista.