Fábio Prikladnicki
Leia, abaixo, a segunda parte da entrevista com o dramaturgo Julio Zanotta. Leia, também, a primeira e a terceira parte. Confira a programação da Semana Julio Zanotta.
Zero Hora - O que o senhor acha que representa para quem faz teatro hoje em Porto Alegre?
Julio Zanotta - Até achava que não representava nada, me sentia muito ressentido com isso (risos). Mas, de repente, vendo eles juntos (na programação do evento que começa nesta segunda), e vendo as mensagens que puseram no Face... Acho que sou amado e odiado. Sou uma pessoa que tropeça no tapete, que quebra as etiquetas, digo as coisas na hora errada, faço piada inadequada no momento equivocado.
ZH - Tenho a impressão de que o senhor é pouco encenado para alguém com uma produção tão grande.
Zanotta - Sempre achei isso também (risos). Sempre me achei subutilizado. Tanto que chegou um ponto, de dois anos para cá, que continuo escrevendo para teatro e já nem me preocupo se vou ser encenado ou não. Não vou mais ficar procurando os caras: "Por favor, me encena". Nem tenho tempo para isso. Não faço trabalho sistemático assim. Adoraria ter um agente literário para quem eu entregasse o texto, e ele distribuísse para os grupos. Mas em Porto Alegre a mecânica é diferente. Os diretores geralmente partem para suas produções a partir do que têm dentro deles. Procuram realizar um anseio pessoal, mais do que se conectar com um possível mercado, como em São Paulo. Lá, tu montas um musical pensando no retorno de público, tem dinheiro para financiar. Aqui, não. Não tem teatro para fazer temporada. As temporadas são mínimas atualmente. A Coordenação de Artes Cênicas faz milagres para atender a todos. Então, a maioria das produções em Porto Alegre fica em busca de patrocínios, sai de um projeto e entra em outro. Termina a captação e já tem de montar outra peça. Vi espetáculos lindíssimos que poderiam ter ficado anos em cartaz.
ZH - Chegou a contabilizar quantas peças tem?
Zanotta - Acho que tenho umas 50.
ZH - Parece misterioso o caminho de um texto até ser encenado.
Zanotta - O Júlio Conte, por exemplo, é um dramaturgo de alto nível. Ele mesmo dirige seus textos. Eu fazia isso há décadas, mas me dei conta do seguinte: com o desgaste que tenho para dirigir uma peça, escrevo três. Tens de lutar contra ventos e marés, é muito difícil. É muito estressante e não tenho suficiente equilíbrio psíquico para segurar a barra de uma direção na véspera da estreia, quando as coisas estão problemáticas e nada dá certo. Então, prefiro ficar escrevendo, que fico calminho, tranquilo.
ZH - Como o senhor se vê? Como uma figura marginal?
Zanotta - Não posso dizer que sou marginal. Estive dentro do status quo cultural da cidade. Fui presidente da Câmara (Rio-Grandense) do Livro, estive lá durante anos. Fui empresário, ganhei o título de cidadão honorário da cidade, prêmio Líderes & Vencedores. Não posso dizer que sou um cara marginal. Não me sinto um cara marginal. Mas me sinto, sim, um iconoclasta. E navego em várias tribos.
ZH - Por exemplo?
Zanotta - Tenho amigos que estão na onda do xamanismo, fazendo experiência com alucinógenos. Tenho amigos que moram no campo, que levam uma vida radical, sem energia elétrica. E tenho amigos que só se preocupam em ter uma BMW (risos). Uma tradução para a palavra travesti é "disfarce". Então, estou sempre travestido, mas por dentro sou sempre eu mesmo. A busca por realizar esse eu me levou à necessidade absoluta de escrever textos.
ZH - O senhor disse que é um iconoclasta. O que pode ser motivo de iconoclastia hoje?
Zanotta - Não fecho com qualquer doutrina pronta, com qualquer seita. Procuro me manter informado. Se alguém vem me falar de permacultura, vou ler um livro sobre isso. Se alguém vem me falar dos Brics, também. Já não leio como antes porque escrevo muito agora. Esse trabalho com a escrita, para mim, exige muito esforço. Não tem essa de inspiração. Tenho uma ideia e vou atrás. Escrevo e reescrevo, procuro a melhor solução, fico preocupado com o personagem. E geralmente tem uma base autobiográfica nos meus textos, mas nem sempre.
ZH - Fica incomodado quando alguém pergunta o que tem de autobiográfico nas peças?
Zanotta - Não. Os textos eróticos, por exemplo, têm uma base autobiográfica. É porque aconteceu comigo alguma coisa parecida ou muito parecida. Lua de Mel em Buenos Aires é a história de um casal sadomasoquista que fica em uma espelunca e espia por uma fresta dois senhores sodomizando dois rufiões. E esses senhores são Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares. No fim, tem um elemento surpresa. Eu realmente tive uma lua de mel com uma menina com quem eu morava. Passamos um tempo em Buenos Aires e ficamos em uma espelunca no centro da cidade. Outra coisa com que me preocupo é a veracidade do que estou escrevendo. Isso é para exemplificar como é o processo de trabalho.
ZH - Não tem um processo único de trabalho?
Zanotta - Ando sempre com uma caneta e um bloquinho de anotações. Geralmente, quando acordo, vêm fluxos (de pensamento). Depois, utilizo esses textos, mas adapto a um contexto. Por exemplo, em Luiza Felpuda, eu tinha aquela imagem do assassinato (da personagem real que inspirou a história), os jornais me deram uma pista para construir um argumento, e aí fiz um teatro bem convencional, com deixas e réplicas, aquele urdimento do teatrão.
ZH - O senhor tem uma preocupação com a renovação formal?
Zanotta - Já passei por isso. Não consegui realizar minha literatura nos ano 1970 por isso. Entrei em uma onda de literatura vanguardista radical e nunca consegui resolver o problema técnico que criei para mim mesmo. Me propus a substituir sinais como ponto, vírgula e ponto de exclamação pelos sinais da física, que são cento e tantos. Me refiro a sinais como "maior do que", "incluído em", "no sentido crescente". E tentei construir umas frases assim. Pulverizei a gramática e me perdi. Não tive condições intelectuais, capacidade intelectual para resolver isso.
ZH - Finalizou alguma peça assim?
Zanotta - Não finalizei, mas tenho os calhamaços de textos. Tenho um que se tornou atual de novo que se chama Colapso e Destruição da Cidade de Porto Alegre. Trata de uma noite em que a cidade explode, se decompõe toda pelas forças naturais. Ao mesmo tempo, as multidões se rebelam e assaltam a cidade, destruindo tudo. Esse texto saiu de novo da gaveta, vou trabalhar nele para transformar em uma peça.
ZH - Nessa peça o senhor usou os sinais da física?
Zanotta - Usei, mas não vou usar mais. Tem frases pulverizadas com esqueminhas da física ali. Isso foi nos anos 1970 e 80. Depois, em 1980 e poucos, virei empresário da área do livro. Para mim, foi muito interessante conhecer o mundo empresarial. Posso dizer que conheço desde a penitenciária até o palácio do governo. Por dentro (risos). Conheço hospício por dentro também. Estive internado e tal.
ZH - Quando?
Zanotta - Na minha adolescência, quando era viciado em droga. Em 1963 ou 64, por aí. Foi no porão do Hospital Espírita, que era uma barra pesadíssima. Louco (a peça) foi tirada dali. Fiquei três anos viciado em uma droga injetável chamada Pervitin. Era uma droga da época. Nem existia cocaína aqui. E a Cannabis estava sendo introduzida. Tu injetavas Pervitin na veia. Aquilo viciava de um jeito que tu roubavas, enganavas o melhor amigo por uma picada, fazia qualquer coisa. Vivi três anos nesse desespero, me relacionava com a bandidagem da época. É uma droga que te deixa ligado. Alguns estudantes a usavam para se preparar para as provas, principalmente os de Medicina, que tinham acesso a isso. Tomavam uma picada e ficavam a noite inteira (acordados). O que me salvou de ter virado um marginal foi o fato de ler muito. Romances clássicos ingleses, russos, franceses.
ZH - Depois, o senhor teve recaídas?
Zanotta - Foi difícil. Mesmo saindo da clínica, foi muito difícil abandonar totalmente o vício. Primeiro, porque meu mundo era aquele. O que me salvou foi uma história de amor. Aos 18 anos, tive um caso com uma mulher de 36. Era uma pianista de música erudita, e ela me levou um pouco para esse mundo cultural. Descobri o teatro nessa época. Eu já tinha visto Navalha na Carne, que tinha me impressionado muito. Vi Os Fuzis da Senhora Carrar do (Teatro de) Arena, apresentado em Capão da Canoa pelo Jairo de Andrade. Foi um marco. Nossa, como esses caras conseguiam dizer o que eles queriam, como encontraram aí um espaço para se expressar. Ou seja, descobri o teatro na saída do mundo das drogas. Foi em 1968. Saí tuberculoso do hospital, em uma sexta feira. Fiz 18 anos no sábado e, na segunda, me internaram no hospital com tuberculose. Fizeram uma cirurgia e me extirparam um pulmão. Várias vezes estive à beira da morte. Aí ganhei um concurso de contos e fui trabalhar no Diário de Notícias, do (Assis) Chateubriand, em 1969. Eu tinha uma página assinada, aos domingos. Isso foi aos 19 anos. Deixei o jornalismo para fazer teatro, mas continuei trabalhando com jornalismo por algum tempo, pela questão financeira.
ZH - O senhor teve outros momentos difíceis desde então?
Zanotta - Nunca mais. Praticamente não uso drogas. Digo praticamente porque uso, às vezes, socialmente. Às vezes, tu vais em algum lugar e todo mundo fuma, daí tu vais fumar também. Assim como o chimarrão, claro, depende de onde tu circulas. Se tu vais a um evento no Interior onde estão fazendo alguma coisa xamânica, ali também rola alucinógeno, ayahuasca e outras coisas. Nas viagens pela América Latina, me interessei muito pelos alucinógenos. Fiz um espécie de pesquisa antropológica. Fui experimentando essas plantas de poder, como chamam hoje. São Pedro (um tipo de cacto) e ayahuasca no Peru, peyote no México, mezcal, essas coisas todas. Mas aí já era uma outra coisa. Eu não tomava para me chapar, para ficar doidão. Era para sacar se existia uma outra realidade, como diz o (escritor Carlos) Castaneda. E até cheguei a uma conclusão: a outra realidade que existe é o que está dentro de nós, não importando a droga que tu consumas.
ZH - Fale um pouco mais sobre a conclusão que o senhor tirou dessas experiências.
Zanotta - A conclusão que eu tirei é que valeu a pena. É uma conclusão extremamente pessoal. Valeu a pena? Valeu. Serviu para alguma coisa em termos de entendimento? Não sei, acredito que não. Valeu para experimentar certas coisas, como uma aventura. Estou sendo confessional. Isso que eu te disse, que estou sempre tropeçando, talvez não devesse dizer. Pode vir alguma coisa que vai me deixar extremamente constrangido, ou que a minha mamãe vai ler e vai dizer: "Ai, meu filhinho..."
ZH - Qual sua opinião sobre a legalização das drogas?
Zanotta - Tu sabes que a maconha é usada assim, nossa, é impressionante... Acho que mais do que cafezinho. Acho que deve chegar a Porto Alegre, por dia, umas cinco toneladas de maconha. Porque não é possível a quantidade de gente que fuma. Acho que a legalização é para breve, para algumas décadas. Veja a legalização no nosso vizinho Uruguai. Não sou um consumidor de maconha, nem é a droga de que gosto mais, mas acho que tem que ser legalizada. Há muito tempo. E não só a maconha, mas todas as drogas. O tabu está criado pelo preconceito. Dizem que uma droga vai te levar para as mais pesadas, as mais pesadas vão te levar para o crime e tu vais te tornar um elemento nocivo para a sociedade. E quem bebe? E quem fuma? Conheci empresários que cheiram o tempo todo e trabalham muito. Outros fumam e não conseguem fazer nada (risos). Qualquer coisa pode servir para o bem e para o mal. Um simples relacionamento afetivo pode terminar em uma tragédia na qual um mata o outro e depois se suicida.
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