Zero Hora convidou os integrantes do programa Pretinho Básico, da Rede Atlântida, para contar qual a imagem que eles têm do frio. Pode ser uma lembrança de infância, um filme, um livro, um período de férias. Até o próximo domingo, durante a última semana de férias de inverno, eles vão esquentar este espaço com suas impressões. O quarto da série é Mr. Pi:
Três e quinze da manhã de terça feira,12°C no termômetro dentro da casa. O silêncio do frio é imensamente maior do que o das outras estações. Ouço atentamente os pequenos ruídos que surgem de um lado ou de outro. Pausados, eles medem o quanto sou capaz de suportar o medo dessa única sensação de solidão. O copo que ergo e levo até a boca parece trazer um conforto que só é possível graças ao que nele está servido e me completa. A única lâmpada acesa ilumina exatamente o que não precisa: a área da frente. Nela, a área, nesse momento, ninguém passa e ninguém senta. Mas é nela, a luz que brilha, de alguma forma a sensação de segurança que preciso, mesmo que distante de mim. O frio continua na casa. O termômetro também, assim como eu.
Já marca três e meia no relógio. A temperatura se mantém. Coloco uma coberta que cobre minhas finas pernas até meus pés. Lembro do meu avô . Ele costumava fazer assim cada vez que jogava carta com seus velhos amigos na sala da casa onde morava em épocas de frio. Enquanto jogavam, minha avó fazia de uma laranja aquecida no sol um motivo suficiente não só para alimentar o seu corpo, mas também para aquecer minha memória futura de cenas inesquecíveis de infância. Ela comia laranjas, meu avô fazia canastras, e eu era apenas um menino que crescia vendo tudo aquilo. Agora, muitos anos passados, e poucos minutos depois do que acabo de escrever, vejo a mesa ao meu lado repleta de laranjas, assim como no balcão diante de mim um baralho que sorri com seu rei de paus e sua dama de copas, e eu me sentindo um valete de ouro.
Quase quatro. Acho que perdi o sono. Acabei lembrando da infância e das frases da mãe: "não apanha frio", "não fica descalço","bota um agasalho", "não sai no frio depois do banho quente". A voz dela está dentro de mim, e eu repito com minha própria durante o inverno inteiro. Hoje sei que fui um gravador. Digo quase tudo que ouvi e faço quase tudo que lá vi. Das frases já ditas sobre o frio até aqui, até as mãos que apertam as cobertas contra o corpo na hora de dormir. Na verdade, foram sempre as mãos dela que me livraram de qualquer sensação de frio.
Cinco da manhã. Baixou um pouco mais a temperatura. Onze, talvez 10°C. Não consigo mais dormir. Cada vez que perdia o sono, acordava meus irmãos pedindo que me tapassem. Não movia o corpo com medo de alguém que eu não sabia quem. Dentro de mim morava um vazio, que enquanto meu pai não chegasse, não teria mais fim. Meus irmãos me confortavam, um dizia "vai dormir", e o outro "para de encher o saco". A noite continuava, como continua essa aqui. De repente o barulho do carro do pai. Soava como uma canção que me fazia dormir. Era o ronco do carro, contrastando com o silêncio do meu sono.
Sete da manhã. Bom dia! A noite passou, e eu não peguei no sono. O frio continua, e eu também. Agora posso dormir. Começa o barulho do dia, e com ele meu silêncio para o sono. Nesta época do ano, o silêncio do frio é imensamente maior do que o das outras estações. Que seu dia seja quente, que não tenhas medo, nem solidão, que seja a voz de uma canção, que seja um jogo de cartas, nem marcadas e nem tão embaralhadas, que seja coberto de alegrias, que tenhas frutas e não só laranjas, que também tenha barulho, que fique gravado, que tenha mãos, que tenha bons pensamentos e belas atitudes, e principalmente, que tenha alguém que você saiba quem pra simplesmente dizer TE AMO !