Em meados de março, quando o preço de equipamentos de proteção individual (EPIs) já ia às alturas por causa da pandemia de coronavírus, o pneumologista Hugo Goulart de Oliveira conseguiu desenvolver um escudo facial caseiro simples e barato. Por apenas R$ 1,80 a unidade, montante suficiente para a compra de uma folha de acetato, um filete de espuma e uma fita de elástico, produziu 450 itens destinados para doação.
O projeto chamou atenção de seus alunos da Medicina da Universidade Federal do RS (UFRGS) e de colegas do Hospital de Clínicas, que toparam contribuir. Em poucas semanas, Oliveira arrecadou R$ 18 mil para adquirir mais material e montou uma linha de produção doméstica que, até o momento, fabricou 8 mil escudos faciais, que têm sido distribuídos a instituições de saúde do Estado.
— Se é que pode haver algum lado positivo nessa pandemia, esse é um deles: reavaliar tudo o que fazemos e tentar fazer diferente, criando soluções, principalmente, de uma maneira solidária — diz Oliveira.
Médico, estudantes e financiadores da iniciativa se uniram a uma rede emergida em meio à desordem causada pelo coronavírus. Em paralelo à disseminação da covid-19, empresas e pessoas físicas têm se associado a uma mobilização considerada histórica, essencial para equipar hospitais que atendem pacientes da doença.
Em Porto Alegre, a volumosa quantidade de doações levou hospitais referência no combate à pandemia a improvisarem às pressas depósitos mais espaçosos para o armazenamento de EPIs. Apenas o Grupo Hospitalar Conceição (GHC) recebeu, de empresas, donativos na casa dos milhares – 386,5 mil máscaras cirúrgicas, 56,6 mil luvas, 10,7 mil aventais, 4,6 mil escudos faciais e 349 litros de álcool gel.
— Essas doações estão ajudando bastante. Antes, estávamos com o estoque de equipamentos muito baixo. Foi fundamental para dar fôlego ao atendimento — afirma o presidente do GHC, Cláudio Oliveira.
Sem informar a quantidade das benesses, o Hospital de Clínicas calcula que o valor dos instrumentos entregues tenha ultrapassado R$ 1,8 milhão. EPIs, mobiliários, produtos de limpeza, máscaras, aventais e protetores faciais estão incluídos nessa conta. Segundo Ana Paula Coutinho, assessora da diretoria administrativa, houve semanas em que máscaras e aventais doados eram os únicos à disposição de equipes de saúde:
— Esse movimento de doações é muito novo e nos surpreendeu de maneira muito positiva. Ter o apoio da iniciativa privada para o enfrentamento de uma pandemia, na condição de uma empresa pública, com orçamento limitado e uma série de ritos para os processos administrativos, favoreceu muito em termos de agilidade. Nos sentimos abraçados pela sociedade.
Além dos itens fundamentais, atitudes de amparo têm acalentado o cotidiano de trabalhadores da linha de frente, inclusive de equipes de segurança e de limpeza. A Bom Princípio Alimentos, do município de Tupandi, no Vale do Caí, entregou potinhos de sobremesa aos trabalhadores do Clínicas, e o coletivo Arquitetos Voluntários desenvolveu ambientes de descompressão para os momentos de descanso.
Pelas redes sociais, o Clínicas lançou uma campanha para depósitos financeiros, dada a imensa procura. Até o momento, R$ 18,1 mil foram arrecadados.
Na Santa Casa de Misericórdia, o amontoado de caixas motivou a ampliação de sua central de recebimentos. Antes restrito a uma sala estreita em um dos prédios da instituição, o setor foi estendido para uma área subterrânea que tem a localização mantida sob sigilo. Pelo receio de furtos, o estoque de EPIs passou a ser protegido por seguranças, cadeados e câmeras.
À rotina de funcionários da Secretaria de Saúde da Capital, também foi adicionado o mapeamento de equipamentos necessários no enfrentamento à covid-19. Com frequência, reuniões são interrompidas por assessores pendurados no telefone – na linha, uma empresa querendo saber o que está em falta. Por ora, já foram entregues, entre outros itens, 103,2 mil luvas, 93 mil máscaras caseiras, 81,9 mil máscaras cirúrgicas, 65 mil toucas e 2 mil testes, entregues a postos de saúde e pronto-atendimentos municipais.
Empresas fornecem equipamentos
Entre as principais doadoras mencionadas pelos hospitais de Porto Alegre estão empresas que transformaram suas linhas de montagem em fábricas de EPIs para o combate à pandemia. A Lojas Renner, por exemplo, doou 1,3 milhão de itens para instituições de Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Rio de Janeiro e São Paulo.
Para isso, mobilizou dois de seus fornecedores na Capital para a produção exclusiva de máscaras e aventais. Inicialmente, a empresa comprou o material necessário para confeccioná-los. A rede, contudo, ampliou-se, e a empresa recebeu TNT, o chamado não-tecido, de outras companhias, quintuplicando seu potencial de doações.
— Tivemos a real materialização de que dependemos substancialmente uns dos outros. A crise mostra as maiores imperfeições e necessidades, e agir de acordo com nossos princípios tem sido fundamental para o posicionamento de quem é líder de mercado — afirma o gerente de sustentabilidade das Lojas Renner, Eduardo Ferlauto.
A empresa aplicou R$ 5,6 milhões em ações voltadas à pandemia. Já a Taurus Armas, embora tenha decidido não revelar o valor destinado, está fabricando, em sua unidade de São Leopoldo, protetores faciais em ampla escala. De acordo com o seu presidente, Salesio Nuhs, a ideia surgiu após assistir a uma reportagem sobre a produção de itens pela UFRGS em uma impressora 3D.
Nuhs percebeu que poderia ampliar o volume de fabricações em suas máquinas injetoras. A proposta que, até o momento, distribuiu 100 mil escudos faciais no país – 60 mil deles no Rio Grande do Sul –, tem a parceria da universidade, do Exército, que disponibilizou servidores para a montagem, da Randon e da Aços e Peças Oliveira, que doaram a matéria-prima.
— Não apenas as empresas, mas também as pessoas são muito solidárias em momentos de crise. Isso faz parte da cultura do brasileiro. Vamos continuar até quando for necessário, para todo o país. No Rio Grande do Sul, já atendemos a quase a totalidade da necessidade — diz Nuhs, estimando que 90% dos hospitais gaúchos tenham recebido seus produtos.
Dedução do Imposto de Renda
Pelo menos três projetos de lei permitindo a dedução do Imposto de Renda (IR) de doações destinadas ao combate à pandemia tramitam no Congresso. No Senado, um deles propõe a concessão do desconto à pessoa jurídica e outro à pessoa física. Já na Câmara, uma proposta sugere o abatimento de até metade das doações por meio de deduções do IR, estabelecendo o limite de R$ 1 milhão para empresas e de R$ 200 mil para pessoas físicas.
Destinar para salvar vidas
Uma iniciativa da Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do Estado possibilita que empresas e pessoas físicas destinem parte do seu Imposto de Renda ao enfrentamento do coronavírus. Os contribuintes podem repassar até 6% de seu imposto devido aos fundos estaduais do Idoso e da Criança e do Adolescente, que serão destinados à compra de materiais de higiene, hospitalares e alimentos. Mais informações em destinarparasalvarvidas.rs.gov.br.