
Simone Biles, Naomi Osaka, Gabriel Medina, Michael Phelps… A lista de atletas que colocaram a saúde mental à frente dos resultados cresce. Ginástica, tênis, surfe, natação... A variedade de modalidades sinaliza uma questão estrutural capaz de permear o esporte como um todo. No Brasil, o caso mais recente envolveu Tite, técnico de futebol.
Acertado com o Corinthians, o ex-treinador da Seleção Brasileira sofreu um ataque de pânico na véspera de sua viagem para São Paulo e optou por pausar a carreira. Além das vitórias e derrotas, o aspecto psicológico ganhou protagonismo na preparação de desportistas de alto rendimento.
No ápice da carreira
Muitos dos casos se manifestam enquanto os grandes nomes do esporte vivem o ápice da carreira. Biles expôs seu problema durante os Jogos Olímpicos do Japão. Osaka, quando era número 3 do mundo. Medina, meses depois de ser tricampeão mundial. Phelps, logo após conquistar seis medalhas olímpicas em Londres 2012.

Aspectos psicológicos podem ser sorrateiros. A rotina frenética das principais estrelas do esporte tem a capacidade de esconder manifestações psíquicas. A excelência chega após muitos treinos, dezenas de competições, bons e maus resultados, a pressão interna de melhorar o desempenho e a cobrança externa de ser uma espécie de máquina esportiva. Em meio ao barulho da vida de atleta, as silenciosas manifestações mentais podem ser negligenciadas.
— O principal adversário de todo atleta é si mesmo. Porque ele não luta, ele não briga contra alguém, ele luta contra os próprios limites. E quando o atleta acorda de manhã cedo duvidando do seu potencial ou cansado dessa vida, esse é o primeiro comando para pensar na possibilidade de algo estar errado com a sua saúde mental — argumenta Katia Rubio, presidente fundadora da Associação Brasileira de Psicologia do Esporte.
Quando o atleta acorda de manhã duvidando do seu potencial ou cansado dessa vida, esse é o primeiro comando para pensar na possibilidade de algo estar errado com a sua saúde mental.
Atenção aos sinais
Há sinais mais crus para a identificação de uma possível fadiga mental, como explica doutor em Psicologia do Esporte Alexandre Colagrai, coordenador do Grupo de Estudos em Psicologia do Esporte e Neurociências da Unicamp.
— Quando algumas questões ficam recorrentes e aumentam de intensidade, como, por exemplo, a raiva, a hostilidade… Às vezes, você acha que a pessoa é raivosa, hostil, mas isso pode ser disfarçado, não como raiva, isso pode ser uma ansiedade, pode ser um medo. Isso altera o estado emocional. Comportamentos de não conseguir se concentrar no momento presente, ficar com muito medo, não identificado de onde vem esse medo.
Às vezes, você acha que a pessoa é raivosa, hostil, mas isso pode ser disfarçado, não como raiva, isso pode ser uma ansiedade

O mito de Aquiles e o atleta contemporâneo
Atletas de alto rendimento são pessoas diferenciadas. Estão fora da média da população. Vivem no limite de seus corpos. Saem de casa todos os dias para superar os índices do dia anterior. Buscam a perfeição a cada movimento.
Outro aspecto se destaca no cotidiano de um atleta. A dor física é uma constante companheira. Muitos competem lesionados. A resiliência cria uma casca em torno dele. Em muitos casos, demonstrar a dor é visto como uma fraqueza.
A convivência diária com desafios autoimpostos, superação de obstáculos e transformação em um profissional melhor se encaixa, na visão de Rubio, ao mito de Aquiles.
— Essa linha tênue que separa o possível do impossível é onde reside o risco da vida. Isso está muito relacionado com o mito de Aquiles, que prefere morrer jovem com glória na batalha a ser uma pessoa que alcança uma idade avançada sem brilho. Vejo que muitos atletas encarnam esse mito de Aquiles na busca da glória. A busca da glória custe o que custar. Diferentemente do mito, onde você tem a eternidade marcada fisicamente, o atleta se eterniza por aquilo que ele faz, que é o que o imortaliza. Persegue uma perfeição que não é do humano — expõe.

A obsessão por melhorar e quebrar barreiras fez o jornal The Guardian chamar os tenistas Roger Federer, Rafael Nadal e Novak Djokovic de psicopatas — no melhor sentido possível do termo —, tamanha a dedicação de cada um deles.
A fixação na melhora constante transforma o trio em ginastas em uma apresentação na trave. Os três, ao que tudo indica, se equilibraram durante suas longas e vitoriosas carreiras entre os benefícios e os danos. Tantos outros perderam o equilíbrio ou resvalaram em suas obsessões e geraram um alto custo emocional.
Rituais compulsivos
Situações como alta agressividade e transtornos obsessivos compulsivos — Nadal tinha diversos rituais em que a rotina é muito marcada — podem ser relevadas quando trata-se de atletas de alto rendimento.
— Chego a pensar que, às vezes, um transtorno acaba ajudando a pessoa a ser campeã, porque ela passa do limite, ela rompe aquele limite. Por uma linha muito tênue, ela não sucumbiu a um nível de transtorno muito elevado, porque de repente conseguiu uma vitória e aquilo compensou. Mas quantos outros não conseguiram? Quantos ficaram com esses transtornos? — indaga Colagrai.

O que é a psicologia esportiva
Embora obstáculos contra o trabalho psicológico no esporte tenham sido derrubados em tempos recentes, o mundo esportivo ainda não tem suas portas escancaradas para este tipo de trabalho. A atitude de Tite colabora para reduzir a obstrução não apenas no ambiente competitivo, mas também em outros contextos sociais.
— O Tite mostra que o objetivo não está acima de qualquer coisa, que a sua humanidade determina os limites da sua profissão. Ele presta um serviço imenso à saúde mental. Não só de pessoas envolvidas com o esporte, mas de todas as pessoas que acompanham o esporte e podem vislumbrar essa decisão nas suas decisões pessoais — exemplifica Rubio.

O ponto levantado pela psicóloga indica os caminhos percorridos pela área. Neste aspecto, pode haver falta de entendimento do público e até mesmo de atletas. O auxílio psicológico apresenta-se como uma ferramenta com força suficiente para ajudar o competidor a melhorar os seus resultados. O objetivo da terapia esportiva, entretanto, é mais amplo.
Um transtorno acaba ajudando a pessoa a ser campeã. Ela não sucumbiu porque de repente conseguiu uma vitória. Mas quantos outros não conseguiram?
— A psicologia do esporte vai atentar para esse ser humano que tem a sua prática, pode ser profissional ou de lazer, voltada para o esporte. Busca o autoconhecimento que, obviamente, proporciona saúde mental, equilíbrio e habilidades para essa pessoa estar no mundo. Isso para que essa pessoa envolvida com a atividade esportiva, seja profissional ou não, também alcance os objetivos dentro do esporte. Esse é o enfoque dessa psicologia do esporte humanizada que eu e a Associação Brasileira de Psicologia do Esporte defendemos. Não é a busca do resultado a qualquer custo, mas é a busca desses objetivos respeitando os limites da humanidade, de cada ser humano — ressalta Rubio.
O Tite mostra que o objetivo não está acima de qualquer coisa, que a sua humanidade determina os limites da sua profissão.
Saída dos holofotes
As questões psicológicas de nomes reluzentes do esporte são apenas a camada mais externa dos aspectos mentais e emocionais do alto rendimento. As faixas mais profundas estão, sobretudo, quando os holofotes se apagam.
Os atletas não se preparam para fazer uma transição de carreira. Em grande parte devido à origem humilde de muitos da elite esportiva brasileira. A falta de rotina, a ausência de competições, a menor atenção do público e da imprensa transformam o mundo interno de um esportista.
Abalo após aposentadoria
O ex-jogador Paulo Roberto Falcão costuma dizer que o atleta morre duas vezes. A primeira quando se aposenta, a segunda quando, de fato, perde a vida. O abalo psicológico na aposentadoria merece um olhar mais profundo, como ressalta Colagrai.

— São os pontos mais críticos para o desenvolvimento de depressão no atleta. É exigido do atleta uma alta identidade com a modalidade, porque ele não pode fazer outra coisa. Ele não tem uma outra identidade. Quando isso acaba, quem sou eu? O que eu faço agora? O que eu faço aqui? A carga de treinamento de estresse imposta na mente, no corpo, é muito alta. Então, é necessário ele criar outros papéis na vida. O custo emocional pode ser um transtorno de depressão constante, a falta de identificação com as coisas, com quem ele é, porque ele não tem outra identidade, ele não representa outro papel.
O custo emocional pode ser um transtorno de depressão constante, a falta de identificação com as coisas, com quem ele é, porque ele não tem outra identidade.
Mais do que o campeonato
Casos como os Biles, Osaka, Medina, Phelps, Tite mostram que a busca pelo desempenho esportivo acarreta em resultados dentro e fora das competições.
A perseguição por conquistas impulsiona carreiras, mas cobra um custo emocional. Como a mente, os sentimentos e o esporte, o mundo da psicologia esportiva é vasto, multifacetado e complexo. E ele não começa nem termina ao fim de uma competição.