
Assim como em outras casas prisionais do Rio Grande do Sul, a bola costuma rolar na Penitenciária Estadual de Arroio dos Ratos (PEAR). O tradicional futebol ocorre nos momentos livres nos pátios dos dois módulos de vivência.
Na unidade desta cidade da Região Metropolitana, assim como em outras três da 9ª Delegacia Penitenciária Regional (DPR), o suor vindo da prática esportiva também pode reduzir os dias de pena através de um projeto-piloto.
A remição não é referente ao futebol no pátio. Ela vem de um momento de musculação orientado por uma técnica superior penitenciária (TSP) com ênfase em Educação Física.
Zero Hora acompanhou o dia de atividades. Este é o segundo episódio da série Esporte Atrás das Grades, que mostra como é a prática esportiva no sistema prisional e socioeducativo do RS.
A cada 12 horas, um dia a menos
A ação é coordenada por Tatiana Rodrigues da Silva, que atendeu pelo projeto-piloto cerca de 130 apenados em junho. Destes, 45 eram da PEAR. Cada 12 horas de atividade físicas computadas reduzem um dia de pena.
O programa, conta Tatiana, se iniciou em outubro de 2024 como uma ginástica laboral com presos que fazem parte das chamadas ligas laborais — aqueles que trabalham nas cozinhas ou na manutenção dos presídios. Ao observar a necessidade de reforço muscular para evitar as lesões, teve começo o projeto.
— A partir disso, a gente começou a confecção de materiais, como pesos, colchonetes e barra. Assim conseguimos ampliar o nosso leque de exercícios — revelou, elencando vantagens da prática esportiva:
— A gente traz o esporte como uma questão de conhecimento, saúde física e mental, proporcionando a eles uma remição e uma ressocialização. Uma nova oportunidade para eles quando saírem daqui.

Aparelhos montados pelos presos
Os halteres feitos possuem 6kg. A barra, 20kg. Todos foram montados pelos detentos. Trabalhador da marcenaria da penitenciária, Frederico — cujo nome verdadeiro, assim como o dos outros presidiários entrevistados, será omitido para não revelar sua identidade — ajudou na confecção dos equipamentos de musculação.
— O esporte é disciplina para a minha saúde. No contexto geral, melhora tudo — afirmou o presidiário de 54 anos.
Mais saúde, menos medicamentos
E é o bem-estar que está no cerne da ação. Conforme a diretora da PEAR, Vanessa Vieira Pinheiro da Silva, o projeto-piloto tem como principal objetivo a melhora da saúde. Ela traz como exemplo a possibilidade de, com melhor disposição física, se reduzir o número de medicamentos usados pela massa carcerária.

Os primeiros reflexos observados são tamanhos que existe o desejo de ampliar o programa para todos os detidos na PEAR. Em 26 de junho de 2025, quando a reportagem esteve no local, eram 799 detidos. A casa tem capacidade para 800 detentos.
— A ideia é expandir para toda a população. Não tem restrição, mas a gente não tem capacidade, no momento, para atender a todos — ponderou a diretora.
Duas fábricas
Vanessa ressalta que na PEAR também estão instaladas duas fábricas: uma de calçados e uma panificadora, que empregam juntas cerca de 100 presidiários. Alguns desses já estão inseridos no projeto-piloto. A gama de possibilidades dentro da penitenciária chama atenção dos próprios presos.
— A outra cadeia que eu estava não tinha essa oportunidade. A gente sabe que é preso, mas tem benefícios — disse Ícaro, 24 anos.

Como é o dia de treino
As atividades físicas orientadas do projeto-piloto realizado na Penitenciária Estadual de Arroio dos Ratos comumente ocorrem ao ar livre. Os presidiários fazem os exercícios em uma área localizada à frente do prédio administrativo. Em caso de mau tempo, como o encoberto e frio dia em que a reportagem visitou o complexo, Tatiana reúne os participantes no salão de eventos do prédio administrativo.
São 12 detentos participando, todos trabalhadores da cozinha ou da manutenção. Os presos foram divididos em quatro grupos de três para realizarem as atividades em quatro estações diferentes, num rodízio de exercícios. A primeira série conta com flexão, abdominal, tríceps e bíceps — estes dois últimos realizados com os halteres montados por Frederico.
Sempre sob o olhar atento de Tatiana, os detentos repetem diferentes séries de exercícios. Durante a execução, a TSP corrige posturas, alerta para o modo correto de fazer o movimento e, quando vê um dos presos ofegante, indica uma necessária contenção na carga da atividade.
— Mão para cima, puxa todos os dedos. O dedão também é dedo! — orienta a educadora física já no final, quando os presos fazem um alongamento.
Ao todo, são 45 minutos de treino de força. Momento bastante aproveitado por Gonçalo, 48 anos. Também marceneiro, ele vê sua rotina dentro da PEAR semelhante à de um trabalhador. É a mesma forma que ele enxerga a prática esportiva.
No Brasil, o futebol é uma religião, né? Então eu sou um ateu no futebol, porque eu realmente não costumo acompanhar.
GONÇALO
Detento sobre não praticar o futebol.
— Como qualquer cidadão normal, a gente precisa desempenhar uma atividade esportiva para não ficar sem praticar algo. Hoje em dia, muita gente está sempre inserida no mundo das telas, então aqui na PEAR a gente desenvolve essas funções esportivas pra sair do ócio, ter uma sensação diferente — ponderou.

Um ateu no futebol
Contrariando a máxima do escritor Eduardo Galeano, de que o futebol é “a única religião sem ateus”, Gonçalo se decreta um. Antes de infringir a lei e ser preso, praticava ciclismo, basquete e boxe.
— No Brasil, o futebol é uma religião, né? Então eu sou um ateu, porque eu realmente não costumo acompanhar — enfatizou.
Faz com que a gente fuja desse ambiente que a gente tem no cotidiano e dê uma desopilada.
HEITOR
Presidiário sobre o projeto-piloto e a prática de exercícios
"Pensar para frente"
Assim, nos períodos de pátio, quando a maioria dos colegas de galeria partem para praticar a paixão nacional, Gonçalo prefere correr ou caminhar. Talvez nas suas práticas ele tenha a companhia de Heitor, outro participante do programa piloto.
O preso de 37 anos era praticante do boxe quando estava em liberdade. Hoje, encontra nas atividades orientadas uma forma de escape:
— (O projeto-piloto) nos ajuda a pensar para a frente. Faz com que a gente fuja desse ambiente que a gente tem no cotidiano e dê uma desopilada.
Ação é rara dentro do sistema penal
Responsável por supervisionar a execução das penas de presos e fiscalizar o sistema penal, a juíza do 1º juizado da 1ª Vara de Execuções Criminais (VEC) de Porto Alegre, Priscila Gomes Palmeiro, revela que ações como as executadas em Arroio dos Ratos são raríssimas dentro das penitenciárias.
— Na verdade, falta o básico — enfatizou.
A magistrada conta que muitas vezes os detentos não têm acesso ao mínimo, mesmo a lei prevendo direito à material de vestuário, a instalações de higiene, ao fornecimento de medicamentos, à alimentação, às assistências judicial e educacional, entre outros. De fato, ela revelou um cenário bastante complicado atrás das grades.
— A pessoa está segregada, ela precisa receber os materiais mínimos e o que a gente vê, muitas vezes, é esses materiais sendo entregues pela própria família porque o Estado não faz essa entrega necessária de, por exemplo, medicamento — contou, e relatou outra situação:
— Eu atendi presos que não sabiam por que estavam presos. Eles precisam saber qual é a razão deles estarem ali.
Cálculo e funcionamento
Dentro deste cenário desassistido, a juíza elogiou o desenvolvimento do projeto-piloto:
— Esse projeto, ele vem ao encontro ao tratamento humano que as pessoas devem ter dentro do sistema.
Sobre a remição, Palmeiro observou que, além de um artigo específico, ela pode ser observada como forma a ser buscada dentro do sistema penal já no primeiro artigo da Lei de Execução Penal, que disse que “a execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”.
— Quando a gente fala de qualquer situação envolvendo a Lei da Execução Penal, a gente tem que pensar no retorno, em proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado. Então, a partir dessas situações, podemos definir remições em projetos específicos como esse — defendeu.
A magistrada explicou que o cálculo de dias a serem reduzidos da pena por determinada atividade é feito a partir de resoluções e parâmetros estabelecidos pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A verificação do que foi feito pelo detento se dá a partir de documentos elaborados pelo responsável do projeto e relatório da direção da casa penal.
Cenário do sistema prisional gaúcho
Todas as 101 unidades prisionais do Rio Grandes do Sul (84 de regime fechado e 17 de semiaberto) possuem espaço para a prática esportiva. Comumente, são áreas com quadra no pátio de sol. Há alguns estabelecimentos que contam com campos de futebol.
Conforme dados da Polícia Penal, o sistema penal gaúcho tinha, em 30 de setembro, 51.469 recolhidos (47.987 homens e 3.482 mulheres). O déficit total no sistema prisional é de 11.319 vagas, o que corresponde aos regimes aberto, semiaberto, fechado e provisório fechado. Há ainda 11.882 com tornozeleiras eletrônicas.
A vasta maioria responde por roubo ou furto qualificados e tráfico de drogas.
Impacto das práticas esportivas
Conforme a diretora do Departamento de Tratamento Penal da Polícia Penal, Rita Leonardi, a prática de esporte com supervisão nas prisões teve início com um projeto de avaliação do impacto psicológico entre os presidiários que jogavam futebol.
O estudo ocorreu em 2021. Com a entrada dos técnicos superiores penitenciários em Educação Física, a partir de 2024, as atividades começaram a ser desenvolvidas em algumas cadeias. De acordo com a diretora, um dos desafios para a reinserção social é justamente o número de detentos que conseguem ter acesso à prática de esportes como remição de pena.
Atualmente, a Polícia Penal do Rio Grande do Sul conta com quatro regiões penitenciárias que possuem, em seu quadro de servidores, a especialidade Técnico Superior Penitenciário (TSP) Educador Físico. Esses profissionais atuam em, aproximadamente, 38 estabelecimentos prisionais. No entanto, há presídios que desenvolvem atividades esportivas de forma autônoma, caso do Júlio de Castilho, onde a reportagem acompanhou a realização de um torneio de futsal.
Via assessoria de comunicação, a Polícia Penal informa que, diante da ausência de profissionais especializados em algumas cadeiras, está em estudo a ampliação da atuação dos educadores físicos no sistema prisional. Tal ampliação deve ocorrer por meio de concurso.
Outros projetos envolvendo esporte desenvolvidos nas diferentes regiões penitenciárias englobam a prática de xadrez, yoga, caminhadas orientadas e torneios de futsal.
"Redução de danos"
Luiza Camponogara Toniolo é técnica superior penitenciária psicóloga que atua na Penitenciária Estadual de Arroio dos Ratos. Por dentro do projeto-piloto, ela disse que, durante os atendimentos aos detentos, é possível notar os benefícios dos esportes no dia a dia dos presidiários.
Segundo ela, os presos demonstram um carinho para com a prática esportiva.
— A gente entende o esporte como uma produção da saúde mental e uma (ferramenta de) redução nos danos do encarceramento. E eles também respondem a isso dessa forma — explica.
É neste contexto que o esporte mostra mais uma de suas facetas: ferramenta de reinserção social.
Legislação de vanguarda
A professora doutora em Direito Penal Vanessa Chiari Gonçalves fez questão de exaltar a legislação penal brasileira. Segundo ela, o documento é de vanguarda no mundo. Porém, sofre com um problema:
— A grande dificuldade é a distância que há entre a norma e a sua concretude, a realidade concreta.
Vanessa ressalta a presença de um instituo na legislação brasileira que nem todos os países do mundo têm: a remição. Ou seja, a possibilidade de, por meio de trabalho, estudo, leitura ou outras atividades, reduzir um pouco a pena.
A professora doutora destaca que isso trata-se de um estímulo de atividades que podem contribuir na reinserção social. No rol destas atividades ela lista o esporte.
Projeto de lei
Inclusive, a docente lembra que há no Congresso um projeto de lei que busca oficializar o que hoje ocorre apenas quando há anuência de juízes, podendo variar a cada Vara de Execução Penal: instituir a remição de pena pela prática desportiva. A proposta de 2013 assinada por Paulo Teixeira (PT), Jô Moraes (PCdoB) e Romário (PL) está parada desde 2015.
— São atividades que retiram a pessoa privada de liberdade da ociosidade — observa.
Neste sentido, a professora doutora reforça a importância do esporte e de outras atividades de recreação:
— Imagina você ser transferido para um local, para uma casa prisional, entregue à própria sorte, à lei do mais forte e não tendo nenhuma atividade para fazer o dia inteiro. Trancado num espaço em que você não tem direito de escolher o que você come. Então, é realmente muito complexo. Não é um ambiente propício à reinserção social.
Ressocialização x reinserção social
A docente da UFRGS faz uma ressalva, diferenciando ressocialização e reinserção social.
— Tenho defendido que ressocialização nos passa uma ideia um tanto equivocada, a ideia de que nós vamos fazer uma reforma moral do sujeito. E eu entendo que a reforma moral é algo muito individual — explica Vanessa.
Para ela, o termo pode ser utilizado para adolescentes que estão no sistema socioeducativo — um público que, por meio da educação, pode passar pela reforma moral. Aos adultos encarcerados, a professora doutora acredita que o caminho é outro:
— Prefiro falar em reintegração social e reinserção social num sentido de acolhimento. Como é que a sociedade vai acolher essa pessoa que passou pelo sistema (prisional) e, até mesmo, o tratamento que ela vai receber durante o processo de encarceramento.
A juíza Priscila Gomes Palmeiro vai além. Para ela, não é possível se falar sequer em reinserção social quando boa parte dos presos sequer teve um contato inicial com a vida em sociedade:
— Muitas das pessoas que foram presas não foram inseridas no sistema. Nunca. Tem muitas pessoas lá (nas casas prisionais) que, talvez, o primeiro contato com o Estado foi a grade da cela. Porque elas não tiveram nenhuma assistência. Nem assistência social, nem médica, nem educacional.
Ela reforça, ainda, a alta incidência de pessoas que não sabem ler dentro do sistema prisional ou que não possuem documentos.


