
A quadra multiesportiva com pintura gasta, goleiras com malhas em bom estado e postes para fixação de redes com jovens utilizando o espaço para recreação e prática esportiva se assemelha a tantas outras encontradas em praças ou escolas.
Os arredores também são similares: árvores fazem sombra, pássaros cantam, um prédio e muros circundam a área. É aí que começam as diferenças.
Zero Hora acompanhou o dia de atividades. Este é o terceiro episódio da série Esporte Atrás das Grades, que mostra o impacto de atividades esportivas para quem está recluso no sistema prisional ou no socioeducativo do RS. Esporte que vai muito além de ser passatempo: pode valer premiações, remição de pena e profissão a partir da liberdade.
Grades e proteção
São muros altos encimados por grades. No céu, antes da liberdade da imensidão azul de uma manhã de temperatura amena e tempo aberto de maio, há uma rede de proteção.
Num dos cantos, quatro agentes socioeducadores observam os 14 jovens que estavam no espaço no dia em que a reportagem visitou o Centro de Atendimento Socioeducativo (Case) Padre Cacique, em Porto Alegre, uma das unidades que compõem a Fundação de Atendimento Socioeducativo (Fase). No momento da visita de Zero Hora ao local, a casa tinha 37 internos, distante da sua capacidade total, 80.
A rotina do treino
Os jovens que chegam ao pátio cumprimentam Ramiro Passos, profissional de Educação Física da Fase, responsável por orientar o momento. A prática esportiva nas unidades de internação como o Case Padre Cacique está prevista no inciso XI do artigo 94 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que diz que é obrigação destes espaços “proporcionar atividades culturais, esportivas e de lazer”.
Um dos jovens mostra os dedos do pé direito machucados para justificar ausência das atividades do dia. Ele e outro socioeducando puxam uma mesa e algumas cadeiras até um ponto com sol e passam a jogar cartas.
Quatro adolescentes ficam escorados no muro, lagarteando, observando os amigos e fazendo origamis — prática comum entre os internos do Case Padre Cacique e habilidade desenvolvida por meio de uma oficina.

Os outros oito ficam na quadra. Conhecendo a rotina do treino, fazem o aquecimento correndo. Depois, em duplas, hora do abdominal.
— Cuida para não pisar no dedão! Tem uma unha encravada — alerta um dos jovens, com os pés descalços, para o seu par.
A regra é de que os adolescentes infratores desçam com tênis para as atividades, mas a maioria vai sem. Assim, em duplas, são orientados a subirem aos seus dormitórios para buscarem calçados. Apesar de fazer 19ºC, muitos dos jovens optam por ficar sem camisa enquanto seguem as atividades físicas orientadas.
Predileção pelo tênis de mesa
Aos 15 anos, João — cujo nome verdadeiro será omitido, assim como o dos outros socioeducandos entrevistados —, é um que regularmente participa das atividades orientadas por Passos. Antes de passar a cumprir medida de internação, não era muito afeito à prática esportiva. Com a regra da rotina no Case Padre Cacique, passou a se aproximar dos esportes e das atividades físicas. Encontrou neles uma forma de perseverar.
— Eu canso rápido, mas sempre tento prosseguir para não desistir — revela.
Rotina
O dia de João começa com o café da manhã, seguido pela limpeza do dormitório — ou brete, como é chamado pelos adolescentes infratores. Depois, é o período de pátio, quando é possível praticar algum esporte. Findado o tempo livre, os jovens tomam banho e almoçam. Às 13h30min, vão para a aula na Escola Estadual de Ensino Médio Senador Pasqualini, que fica dentro do Case. As atividades do dia encerram às 17h15min, quando retornam aos dormitórios.
Do pingue-pongue ao tênis de mesa
João, aliás, já foi campeão no Case. Venceu um torneio de artilheiro — jogo disputado em duplas com um goleiro e um jogador de linha de cada lado no qual o atleta de linha só pode dar no máximo dois toques na bola: um para dominar e outro para chutar. Apesar disso, tem preferência pela prática de xadrez ou tênis de mesa, este um esporte amplamente praticado no local. Inclusive, surpreende ao responder sobre qual atleta o inspira:
— O “seu” Júlio. Eu cheguei aqui e não sabia jogar (tênis de mesa). Jogava na rua o pingue-pongue, aí ele me mostrou e eu gostei mais do tênis de mesa.

O “Seu Júlio" é Júlio César Costa Pompermayer, agente socioeducador da Fase que há sete anos trabalha com os adolescentes o esporte no qual o Brasil tem se destacado mundialmente com nomes como Hugo Calderano e Bruna Takahashi.
— É um esporte que tem a adesão quase que de 100% dos jovens porque não tem contato físico, que consegue trabalhar vários valores — explica.
Saída da Case para competição
Com os ensinamentos dele, dois adolescentes infratores se destacaram na prática e conseguiram autorização judicial especial para deixar o Case Padre Cacique e, em abril deste ano, participar do 3º Torneio Estadual de Tênis de Mesa da Fase, disputado no Centro Estadual de Treinamento Esportivo (CETE), em Porto Alegre.
— Foi uma oportunidade boa e dá para ganhar confiança (em si mesmo) — relata André, 17 anos, um dos jovens que recebeu a autorização judicial.
"Bom demais"
Aos 18 anos — a idade limite de internação é 21 para aqueles que cometem ato infracional aos 17 anos —, Mateus também recebeu autorização judicial para participar do torneio. A oportunidade deixou o jovem, que se mostrou extrovertido durante a atividade orientada por Passos acompanhada pela reportagem, com poucas palavras.
— Bah, não tem como explicar. É bom demais — resume.
Mateus relata que antes de chegar ao Case não praticava esportes. Ali, passou a incluir em sua rotina a prática esportiva para se distrair e não passar tanto tempo no dormitório. Pretende seguir ligado ao esporte após cumprir sua medida:
— Vou sair, seguir minha vida e continuar fazendo esportes: tênis de mesa, que eu gosto muito, e o futebol.
Os espaços para a prática esportiva
Entre os esportes praticados pelos jovens do Case Padre Cacique também estão o vôlei, o basquete e, claro, o futebol. Há predileção por esportes com raquete, como o tênis e o tênis de mesa. Além do momento orientado por Passos, os adolescentes também têm aulas de Educação Física uma vez por semana.

O pátio é liberado todos os dias em horários determinados, momento em que os infratores podem jogar bola ou praticar outros esportes. Nos dias de chuva, é utilizado o antigo teatro do prédio, mesmo espaço usado em dia de visitas.
Nele, estão pintadas linhas para diferentes práticas, como o vôlei e o basquete. Cestas móveis e postes para posicionamento de rede estão em um canto, aguardando para serem utilizados.
Xbox 360
Há, ainda, a Sala de Jogos Seu Cantini. O nome é uma homenagem a um ex-servidor, hoje falecido, que, segundo Passos, era um “agente socioeducador na essência”, sempre movimentando os jovens internos em atividades diversas. Na sala há uma mesa para a prática do tênis de mesa e outra de “Fla-Flu”.
Um Xbox 360 está conectado à uma televisão — mas é pouco utilizado, garante Passos. Numa parede estão pintados os símbolos de Grêmio e de Inter, em outra estão afixadas caricaturas de esportistas como Ronaldinho, Daiane dos Santos, Pelé, Marta, Anderson Silva e Michael Schumacher.

Inspiração
Da recepção da unidade é possível ver de relance o Beira-Rio. Quem sabe uma inspiração para o futuro após a retomada da liberdade. Algo que, para alguns, chegou a ser palpável, como conta Tiago.
Fui pelo caminho errado e o meu sonho acabou. Se Deus quiser, vou voltar.
TIAGO
Socioeducando de 16 anos
Reconexão com o esporte
Aos 16 anos, ele busca reconexão com o esporte após ter cometido um ato infracional — não especificado para não o identificar. Antes do delito que o levou ao Case Padre Cacique, atuou na base de um clube da Região Metropolitana. Após se mudar para outra região do Estado, perdeu contato com o esporte.
— Fui pelo caminho errado e o meu sonho acabou. Se Deus quiser, vou voltar — afirma, esperançoso.

Teste em clube
Tiago não é o único que vê no futebol uma oportunidade de retomar a vida após cumprir sua medida socioeducativa. Pedro também alimenta esta esperança. Aos 16 anos, aguarda ansiosamente a progressão de sua medida.
Quando isto ocorrer, poderá fazer atividades externas e, conforme combinado com o educador físico do Case Padre Cacique, fará teste em um clube de futebol da Capital.
Participando de escolinhas de futebol desde os 11 anos, Pedro, que tem Messi como sua inspiração, crê que o tempo privado da liberdade pode lhe ajudar a focar no sonho de ser jogador:

— Aqui (no Case) não tem outras coisas (para tirar o foco). Na rua “é” mil coisas que o cara está fazendo. Aqui, se concentra no bagulho e foca.
Quando há a oportunidade, Pedro joga futebol com os demais internos. Além disso, participa das atividades físicas orientadas promovidas uma vez por semana, organizadas por Ramiro Passos, profissional de Educação Física da Fase — aquele que lhe prometeu o teste em um clube da Capital.
Avaliações
Segundo Passos, os encontros proporcionam prazer aos jovens. Para além disso, também permitem que ele mesmo realize outros âmbitos do seu trabalho.
— É um momento em que se pode também observar os guris do ponto de vista avaliativo. Tem um processo avaliativo a cada seis meses. Se consegue resolver questões de conflito entre eles através da atividade esportiva — explica o educador físico, que complementa:

— Ajuda na evolução deles e, de repente, na ressocialização. Aqui eles conseguem estabelecer o controle de limite. O esporte, por natureza, através da regra e da atividade física, traz prazer e necessidade de respeitar o espaço do outro. Então, proporciona bastante ganho para os adolescentes.
Panorama na Fase
De acordo com o chefe do Núcleo de Esporte, Lazer, Cultura e Espiritualidade (Nelce) da Fase, Pedro Falkenbach Júnior, em cada uma dos 12 centros de internação da Fase há um profissional de Educação Física, bem como um professor da mesma disciplina que faz parte do corpo docente da escola de cada Case.
Além das 12 unidades de internação — o equivalente ao regime fechado no sistema penal —, a Fase também tem nove de semiliberdade — semelhantes ao regime semiaberto do sistema prisional. Somadas, podem abrigar 855 jovens infratores. Ao final de setembro, eram 503 internos: 480 do sexo masculino e 23 do feminino.
Perfil dos infratores
Dos adolescentes socioeducandos, 75% respondem por atos com grave ameaça ou violência à pessoa. Outros 23% cumprem medida por outras infrações graves, sendo 17% destes por tráfico de drogas. Por fim, 2% estão na Fase por descumprimento de medidas de meio aberto (liberdade assistida e prestação de serviços à comunidade).
Esporte e lazer
Pedro destaca que cada local tem suas especificidades, com oficinas e atividades dirigidas por servidores conforme as suas habilidades. Além disso, as quadras são utilizadas diariamente para esporte e lazer.
Esporte como forma de integração
O presidente da Fase, José Stédile, enfatiza que não há superlotação no sistema. Inclusive, há uma central de vagas, possibilitando o remanejo de adolescentes. Além disso, o Estado trabalha para inaugurar mais uma unidade, em Osório, cuja obra representa um investimento de mais de R$ 28 milhões e está quase concluída. Assim, o principal desafio enfrentado pelo órgão é a formação profissional dos jovens.

— A formação profissional é fundamental. E o que a gente busca é que ele (o jovem infrator) não regresse para o mesmo ambiente, a falta de ocupação, a gente procura criar espaços internos e externos para que eles possam criar uma nova vida e eles sejam recuperados — diz Stédile.
O presidente ressalta que o esporte tem papel crucial neste processo de ressocialização por trazer disciplina e integrar os jovens. Por isso, o órgão aposta em diferentes práticas e ações que o envolvam.
— Veja, o esporte não é só futebol. Tem tênis de mesa, tem xadrez, tem vôlei... — reforça.
Skate
A diversidade é reafirmada pelo chefe do Núcleo de Esporte, Lazer, Cultura e Espiritualidade (Nelce), Pedro Falkenbach Júnior. Ele destaca a importância da ação local dos agentes socieducadores, da parceria com prefeituras e de voluntários. Como exemplo ele cita o caso da Comunidade Socioeducativa (CSE), localizada em Porto Alegre, onde um esporte olímpico ganha espaço:
— Estão buscando parceiros na área do skate. Eles já fizeram algumas oficinas recreativas e estão com essa proposta de trabalhar de maneira a desenvolver esse fundamento e esse esporte com um pouco mais de direcionamento.
Diversificação inspirou "Olimpíada da Fase"
A variedade de esportes praticados resultou na criação do Intercases — Jogos de Confraternização da Fase. Inspirado nos Jogos Olímpicos, o evento reúne delegações de diferentes unidades para disputas esportivas com o objetivo de promover o esporte como ferramenta de ressocialização.
Neste ano, o Intercases chegará à sexta edição. A previsão é que ele ocorra em novembro. Se seguir os moldes da quinta edição, realizada em 2024, serão dois dias de competição envolvendo 250 pessoas, entre adolescentes cumprindo medida socioeducativa e servidores da Fase.

As edições mais recentes, revela Falkenbach Júnior, encontraram um “bom problema” e uma solução melhor ainda. Como não há mais superlotação nas unidades, ficou mais difícil que jovens de uma mesmo Case formem uma equipe. Assim, as disputas de futsal foram realizadas com times montados reunindo adolescentes de diferentes Cases.
— Tinha jovem de Passo Fundo jogando junto numa mesma equipe com jovem de Porto Alegre, jovem de Uruguaiana. E isso gerou uma integração maior. Foi algo bem positivo que a gente teve ano passado — celebra o chefe do Nelce e completa:
— Então, a gente começa a trabalhar com essa ideia de integração, de fato (o Intercases) ser muito mais uma celebração do que uma competição.

