
Na preparação para o Gauchão de 1975, o São Paulo de Rio Grande chocou o Estado. Não pelo time, já tradicional e de duros enfrentamentos com a dupla Gre-Nal. Nem pela paixão da torcida. Há meio século, o clube da cidade da Região Sul apresentava uma preparadora física para a equipe de futebol adulto.
A professora Cleusa Maia era a primeira mulher a integrar a comissão técnica de um time profissional do Brasil. Passados 50 anos, a agora aposentada guarda as melhores lembranças e comemora a cada nova colega inserida em um meio tão masculino.
Na edição de dezembro de 1974 que apresentava a profissional, Zero Hora descrevia na manchete: "Bonita, Feminina. Esta é Cleusa Maia, fisicultora". E logo abaixo contava que ela desejava trabalhar na dupla Gre-Nal. O texto traz alguns trechos interessantes, que precisam ser adaptados ao contexto da época. Mulher no futebol? Na arquibancada e olhe lá. Por isso, o terremoto.
Cleusa entrou no futebol por causa de seu marido. Em 1974, João Carlos Maia era diretor do Riograndense, também de Rio Grande, e pediu à esposa que "desse física" aos juvenis.
A aceitação foi boa, e ela chegou a trabalhar no time principal em alguns momentos. Quando João Carlos foi para o São Paulo, o técnico rio-grandino Sérgio Satt lhe deu a chance definitiva nos profissionais.

Apesar do tabu da época, Cleusa garantiu que nunca se sentiu desrespeitada pelos atletas. Todos obedeciam suas ordens. Ela disse, em 1975:
— Os jogadores são educados e respeitadores, apesar de muitos não terem nível cultural elevado. O que fiz de inédito, tornando-me preparadora física, não os deixou humilhados. Pelo contrário, sinto que até têm orgulho em dizer que são preparados fisicamente por uma mulher.
Quando o São Paulo enfrentou o Grêmio, os profissionais tricolores foram perguntados sobre o trabalho de Cleusa. Apesar de alguma resistência, a resposta de Ícaro Rodrigues, fisicultor do Tricolor e professor de Cleusa no IPA, chama a atenção:
— Ela tem tudo para ser uma grande preparadora, não tem problema de relacionamento com os jogadores. E cada palavra dela equivale a um grito meu.

Claro que houve resistência. A Zero Hora do dia seguinte ao perfil de Cleusa traz uma entrevista com o presidente da Escola de Futebol de Porto Alegre, que idealizou o curso para treinadores, Antônio Carlos Mendes Ribeiro.
Além de frisar a proibição, por lei, de mulheres participarem do futebol profissional no Brasil, ele afirma:

— Nem como preparadoras físicas é aconselhável ter mulheres em times de futebol. Os conteúdos de seus conhecimentos limitam-se aos problemas de arbitragem de jogos entre colegiais.
Ela lembra de uma participação em um programa de TV no qual foi perguntada, em tom jocoso, por Gilberto Tim, histórico preparador físico brasileiro, de muito sucesso no Inter, como faria para entrar no vestiário, por exemplo.
— Respondi: "Sou preparadora física, não preciso ver eles tomar banho" — relembra.
Apoio do marido

O apoio do marido foi fundamental. João Carlos Maia, morto em 2021, sempre incentivou a companheira de vida. A ZH, ele mostrou o quanto o casal estava à frente do tempo. Disse:
— O pioneirismo dela pode incentivar outras mulheres a imitá-la, tornando o futebol mais humano.
Passado meio século, Cleusa continua em Rio Grande. Aos 78 anos, mantém ótima forma graças a jogos de padel e sessões de pilates. E, claro, por caminhar por toda a cidade.
A experiência no futebol profissional se restringiu ao São Paulo. Até pela realidade da época, fez carreira como professora de educação física e diretora de escola, além de trabalhar em academias de ginástica e com crianças em escolinhas.
Presença feminina no futebol
Mas quanto o futebol mudou nesse período. Não é mais uma raridade (ainda que em menor número) a presença feminina. As mulheres estão nas comissões técnicas, na arbitragem, na imprensa. Isso sem contar os campeonatos cada vez maiores.

— Fico muito, muito orgulhosa de ver as meninas no futebol. Na minha época, tínhamos problemas até para convencer as meninas a realizar atividades físicas. Eram coisas da época que não seria uma coisa feminina. Eu mesmo já escolhia as turmas masculinas, era mais fácil lidar com os guris. E isso felizmente está mudando — opina.
Cleusa entende que há uma clara mudança em andamento. Mas apesar de seu pioneirismo, não se coloca como parte responsável por essa revolução:
— Não acho que as meninas vão se espelhar em mim ou coisa do gênero. Talvez nem saibam que eu existi. Ainda vemos desrespeito às mulheres, especialmente às árbitras, mas evoluímos e temos um caminho longo a percorrer.
A tarefa de todos é fazer como o educador físico Leonardo Costa da Cunha. Em seu doutorado na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), contou a história da "colega" com a tese: As mulheres no futebol do Rio Grande/RS nas décadas de 1970 e 1980: entre subversões, pioneirismos e invisibilidades.
É dever lembrar que as portas se abriram porque existiu Cleusa Maia.