A CBF não quis Tite. Azar do Brasil.
Outra nação, a corintiana - a segunda torcida mais numerosa do país, com cerca de 28 milhões de almas - abrigou o seu treinador favorito, campeão paulista, brasileiro, sul-americano e mundial, depois de um 2014 sabático. A volta do caxiense Adenor Leonardo Bachi, 53 anos, 15 de carreira ao Timão teve impressionantes índices de aprovação.
- É bom, muito bom ser querido pelos torcedores. É um reconhecimento.
Ao receber a ligação de ZH numa quarta-feira, noite sagrada do futebol, depois do jantar, Tite estava de dono do controle remoto e navegava pelos canais de esporte.
- Tô dando uma espiadinha no Inter (e Avenida). Depois tem o Grêmio (e Novo Hamburgo), mas minha prioridade é Palmeiras e São Paulo.
Na entrevista, Tite não fala apenas sobre a sua equipe. Toca na dupla Gre-Nal, no gremista Giuliano, na Copa Libertadores, em Ancelotti e conta como se comporta quando seu cargo está a perigo. Aproveita e explica os motivos que o levaram a recusar um milionário convite para treinar o Inter.
- Não foi por dinheiro que eu optei pelo Corinthians.
Você tomou uma decisão rara no final de 2013. Dar um tempo. Qual a razão?
Foi algo pensado. Eu também me questionei antes de tomar a decisão. Era um momento importante na minha carreira, estava no auge, depois de uma sequência de títulos, do Mundial da Fifa, no Japão. Eu vinha de um trabalho de quase quatro anos ininterruptos. Eu via a possibilidade de crescer. Era necessário porque eu vivo me desafiando de certa forma. Não me acomodo. Vou atrás. Ainda tenho sonhos. A parada foi decisiva na minha carreira.
Não recebeu convites no período?
Abriram-se algumas possibilidades como a de ser chamado pela Seleção Brasileira. Surgiu a seleção do Japão, uma chance na Itália. Mas, no fim, ficou a opção por um ano sabático.
Conta como foi seu ano sabático em 2014?
Fiz muitas amizades no futebol, com jogadores, treinadores e dirigentes. Tenho uma relação muito boa com o Carlos Bianchi. Visitei Buenos Aires e conversei muito com o Bianchi, um multicampeão. Ficamos próximos. Estive em Londres, entrei no Arsenal graças ao Gilmar Veloz (seu empresário), que tem ótimos contatos no clube. Assisti a grandes jogos da Premier League, mergulhei nos encontros da Liga dos Campeões, observei, aprendi, estudei, li bastante. Foi uma notável experiência.
Foto: Daniel Augusto Jr. / Agência Corinthians
Você foi recebido pelo Carlo Ancelotti?
Fiquei uma semana no Real Madrid, tive conversas que eu não imaginava ter com o treinador Ancelotti, um vencedor, com vários troféus da Liga dos Campeões.
Como foram os encontros?
Surpreendentes. A gente foi quebrando o gelo aos pouquinhos. Em determinado momento, descobri que ele é da mesma região da minha família, que veio do norte da Itália. Eu falo um pouco do dialeto dos meus avós. Então eu comecei a usar um pouco do dialeto com ele no CT do Real Madrid.
E ele?
Começou a rir. Disse: "Olha, este é o mesmo dialeto dos meus antepassados". E aí tudo começou a andar. O Marcelo (lateral do Madrid e da Seleção), que sabia mais de mim do que o Ancelotti, me ajudou também na aproximação. Falou quem eu era no Brasil. Aí tudo começou a fluir naturalmente. Jantamos juntos, almoçamos. O Ancelotti mostrou-me todo o CT do clube e como é a vida no interior do clube.
Até os treinos?
Acompanhei, claro. Mas eu sou uma pessoa reservada. Fico na minha. Não gosto de me intrometer. Eu sei que o vestiário é uma coisa muito sagrada no futebol. Mas ele abriu tudo, vestiário e treinamento. Disse-me: "Vamos lá". Trouxe-me para dentro do treinamento. Ficamos próximos. Vi o trabalho que ele faz com a bola, vi como usa a informática, suas correções nos treinamentos, os princípios táticos.
Religioso, Tite em momento de oração antes de jogo do Corinthians
Foto: Daniel Augusto Jr. / Agência Corinthians
Você o admira?
O perfil de liderança dele é algo que eu admiro, que eu gosto. É algo mais light. E não é de marketing. É mais discreto, é como eu gosto.
O que os técnicos europeus mostram de novo?
É difícil responder. Parece que é uma fórmula pronta. Eu creio que a nossa realidade é outra. Não acredita em importar. Olha, isto é bom, busca que vai dar certo. O Ancelotti, por exemplo, fez um trabalho num dia que antecedia o jogo. Eu fique observando. Após o trabalho, nós fomos para a sala dele, tomamos um café e ficamos conversando. Ele disse: "Eu abro mão do tempo do trabalho. Mas não abro mão da intensidade física de concentração". Quando ele falou, abri um pequeno sorriso.
Riu?
Eu acredito nisso. Não acredito em duas horas de trabalho, espichar o trabalho de olho no relógio. Treinar em grande intensidade traz benefício. Quanto mais o trabalho lembrar uma situação de jogo, melhor. Todos os treinamentos técnicos e táticos com impedimento, por exemplo.
Dá para copiar o sistema de jogo do Madrid?
O Real Madrid ataca no 4-3-3, mas defende com duas linhas de quatro. Deixa o Cristiano Ronaldo, que gosta de jogar do lado esquerdo, mas entrando pelo meio, e o Benzema, que é muito inteligente, numa linha mais avançada. Quer dizer, defende bem, mas guarda fôlego para o ataque. Não vou copiar o esquema. O Ancelotti tem os jogadores ideais para desenvolver este sistema tático.
Você visitou o Arsenal, em Londres. Foi uma experiência positiva?
A informática do Arsenal é especial. O trabalho da comissão técnica me tocou, pois ela capta os principais lances de uma partida e aborda tudo depois com os atletas envolvidos nestas jogadas. Comenta suas participações. Escolhe cinco atletas e faz uma analise individual detalhada e aponta as correções. Ou destaca aquilo que deu certo. Isto tem um efeito didático muito grande. O atleta gosta disso. Depois, o técnico traz algumas situações táticas maiores, numa abrangência total da equipe. A informática entra em campo, ajuda a comissão técnica, o treinador e óbvio, todos os jogadores.
Você acha que o futebol do Exterior pode ensinar algo ao Brasil?
Há fases e momentos de cada país. Eu gosto das seleções da Alemanha e da França. Campeões do mundo, os alemães têm um sistema muito equilibrado pelas características dos seus jogadores. O 4-1-4-1 da Alemanha é muito competitivo. Tem a qualidade do passe, a transição, a movimentação. Fui atrás para saber mais da escola da Alemanha. Eu tentei adotar no Corinthians, mas não tinha domínio de todas as funções. O que fazer com o lateral, como quando atacar, onde o time pode chegar, qual a compactação ideal?
O Corinthians começa 2015 no topo?
O time tem uma característica que eu gosto muito. Ele infiltra, tem jogadores móveis que passam da linha da bola, o que dá agressividade, velocidade e opções ofensivas. Com três ou quatro toques, chega à frente. Os gaúchos vão lembrar. Quando eu tinha D'Alessandro, Giuliano, Alex, Taison e Nilmar, o Inter fazia quase igual. Eu tinha articuladores e meias que chegavam à frente. Tinha pontos de equilíbrio, um time competitivo.
Foto: Daniel Augusto Jr. / Agência Corinthians
É o melhor time deste começo de temporada no Brasil?
A equipe cresceu bastante. Surpreendeu-me. Eu não esperava. São poucos jogos, só 19. É muito pouco, mas o começo é muito bom. Mantém o padrão porque começou bem a pré-temporada. Em termos de metodologia, eu consegui fazer trabalhos táticos desde o primeiro dia. Mais do que trabalho técnico e tático, proporcionei treinamentos que deu ao atleta a rapidez e a capacidade de decidir, pensar rápido, jogar de primeira, agir. Mas é muito cedo para saber em que lugar o Corinthians pode chegar. É uma equipe forte, que vai crescer. Ela vai se forjar, se formar durante as competições.
Como você observa a atual Libertadores?
Vi jogos de boa qualidade. O River, por exemplo, cometeu um erro, empatou em casa com o Juan Aurich e pode ficar fora da próxima fase. Vejo o Boca bem, muito bem, com boas opções técnicas. Eu não queria vender o Lodeiro. Mas os argentinos levaram. O Cruzeiro está sofrendo pelas mudanças radicais que teve e está em busca de um padrão de jogo. O Atlético-MG sofreu uma reformulação grande. Gosto do Santa Fe, da Colômbia. Notei os peruanos do Juan Aurich, mas jogar em campo sintético não dá, não tem condições. Ninguém faz um passe certo ou controla o tempo da bola.
E o Inter?
Está se fortalecendo. Eu sei a força que o Inter tem, a qualidade técnica e individual. O Diego Aguirre está em busca de ajustes. O time possui jogadores experientes, que estão acostumados a disputar a Libertadores, o que é importante. A gente sabe que a experiência conta muito.
Depois do Inter, vamos falar um pouco sobre o Grêmio e um jogador que você conhece bem e que aos poucos recupera seu futebol. O que você acha do Giuliano?
Pensador. Sabe articular e chega à frente. Pô, tripla função? No Inter, na sua afirmação, atuava mais livre, mais solto. Passou um tempo, e eu o trouxe para uma zona mais atrasada e ele cresceu uma barbaridade. Ele pode jogar em várias posições, até como segundo volante ou como articulador. É um jogador moderno, versátil. É difícil encontrar um jogador que tenha todas estas características.
É jogador de Seleção?
Se ele retomar o padrão que estava no Inter, sim.
Bah, você gosta dele mesmo?
Dá o Giuliano pra nós (risos).
Você encontrou o Felipão depois da Copa?
Depois da passagem dele pelo Palmeiras, do problema que aconteceu no jogo entre Palmeiras e Corinthians (os dois discutiram em campo, em 2011), não falei mais com ele.
Foto: Daniel Augusto Jr. / Agência Corinthians
E com o Mano Menezes, outro treinador gaúcho, seu antecessor no Corinthians?
Não. Não falamos. Não tenho uma amizade, um relacionamento mais próximo com ele. Tenho uma proximidade com o Abel. Encontrei o Abel num voo, em São Paulo, em dezembro, depois da última rodada do Brasileirão. Conversamos, trocamos umas ideias, falamos sobre a profissão, pois temos uma amizade, uma liberdade maior. Ele me disse, eu concordei. "Depois da Copa, se tiver um problema em algum clube ou se cair um pingo d'água no chão, a culpa é do técnico". Eu comecei a rir. Disse: "É verdade, cara". Depois da Copa, a gente é culpado de tudo.
Os treinadores estão sempre na mira de todo o mundo.
Uma pesquisa indica que o Brasil é o país que mais troca rapidamente de técnicos. Aí, penso: "Que estrutura é essa?". Aqui, se não me falha a memória, a média é de 17 jogos por treinador. Na Premier League é de 16 meses. Que condição de trabalho é dada ao profissional para que ele seja tão cobrado de uma maneira tão desproporcional?
De quem é a culpa?
Eu pergunto. A culpa é do técnico ou de um conjunto de situações? É culpa da falta de uma melhor formação de executivos de futebol, de dirigentes, da formação de atletas na base, da imprensa, da CBF? Da ausência de cursos formadores para o professor de educação física ou ex-atletas que desejam continuar no meio?
O técnico sofre.
As criticas ao Felipe depois da Copa foram desumanas. Não tenho procuração para defendê-lo, nem conversei com ele depois. Que história é essa de culpar só um? Só o Felipão. Será que não dá para dar um passo atrás para ver como é possível fazer um futebol melhor no Brasil.
Como você age nestes momentos de crítica intensa?
Nos resultados negativos, quando a imprensa começava a falar ou um diretor dá um "ooooo", dizendo que o time precisa de resultados urgentes, a primeira coisa que a boleirada fala, e, às vezes, o técnico também é que "o homem vai cair. Vai estourar no homem". O que acontece?
O barco fica à deriva.
Todos deixam de se comprometer e de fazer algo mais. Se o resultado não está vindo, cada um de nós tem uma parcela de responsabilidade. Então, vocês atletas tratem de melhorar. O técnico trata de melhorar. Cada um de nós vai contribuir.
O que isto gera no grupo?
Uma responsabilidade. Uma atitude, uma noção de disciplina muito grande. Quem consegue fazer isto dá um salto, dá um passo à frente na formação da equipe. Mas tem que ter culhão. O treinador tem que ter maturidade para aguentar o tirão. Dar porrada.
Por que você não aceitou o convite do Inter?
O presidente do Corinthians, Roberto de Andrade, como Vitorio Piffero, do Inter, me conheciam. O Roberto foi meu diretor de futebol durante quase quatro anos no Corinthians. Ele é a pessoa que mais me conhece no Corinthians. Nós passamos todas as adversidades juntos, momentos que consolidaram meu trabalho. Festejamos títulos juntos também. A engrenagem já estava muito mais ajustada para que a gente pudesse desenvolver um trabalho mais rápido em São Paulo. Fundamentalmente foi isso, não foi por dinheiro ou outra coisa qualquer. Conhecia a metade do grupo de jogadores, a base foi campeã mundial comigo em 2012. Tu já adiantas todo um processo.
O Hélio dos Anjos, do Caxias, elogiou o trabalho do teu filho (Matheus Rizzi Bachi) numa entrevista que fiz na minha coluna na semana passada.
Eu vi. Mandaram-me a página por WhatsApp. Fiquei contente com o reconhecimento do trabalho dele na comissão técnico do Caxias. Ele é muito dedicado.
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Luiz Zini Pires
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