O retrato de um sistema que não funciona

Ojoão-de-barro encanta pelos ninhos que espalha nas cidades. São moradias tão perfeitas, que, quando desabitadas, chegam a ser cobiçadas para virar enfeites residenciais. Na contramão do que a denominação deveria significar, a casa que leva o nome do pássaro, situada na zona sul de Porto Alegre, é sinônimo de desleixo, desamor, desproteção. Tudo isso em relação àqueles que, por lei, deveriam ser a prioridade absoluta dos cuidados do poder público: crianças e adolescentes.

A informação é básica, mas não custa lembrar que, quando chegam ao João-de-Barro, ao Quero-Quero ou a qualquer outro abrigo público, essas crianças e adolescentes já estiveram em situação de risco, de violência, de abusos e carências variados na própria família. São arrancados de lares duvidosos para receberem, enfim, a proteção que está sacramentada em lei — não só na Constituição Federal, mas também no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que completou 25 anos este mês.

O que se vê, no entanto, pelo olhar de autoridades que mergulharam nesses locais nos últimos dias, meses e anos, é que as casas dos sonhos, servindo como um lar de verdade, só existem no papel. Nas normas que tratam da proteção à infância tudo funciona tão bem que o abrigo João-de-Barro (JB) até poderia encantar como o ninho do pássaro. Mas é lúgubre, feio, escuro, úmido, sujo, desorganizado, cheira mal. É triste.

Numa ensolarada e fria manhã de abril, por volta das 11h, a maior parte dos jovens que está na casa dorme em quartos fétidos. Roupas se espalham pelo banheiro imundo. Três adolescentes fazem de conta que jogam numa velha mesa de fla-flu, diante de uma despencada estante de madeira, semiquebrada e de portas abertas. Vazia. Sem livros, sem jogos. A TV berra algum programa matinal para nenhum espectador. O chão coberto de pó é forte aliado do abandono e do desleixo. A impressão só piora em direção aos fundos do imóvel.

Adriana Irion / Agência RBS

Um banheiro está interditado, há meses. O refeitório, um dos ambientes que deveriam servir para estreitar laços de quem ali reside, é pálido, com mesa e paredes brancas. Não há nada acolhedor. O pátio é amplo, com piscina, com árvores, mas mais parece um cenário de guerra. Roupas e pedaços de colchões rasgados estão espalhados. Há lixo. Nenhum atrativo de lazer. A piscina está imunda como sempre esteve em inspeções anteriores. Ao ver autoridades, funcionários correm a pegar vassouras. Trabalham rápido na tentativa de recuperar o irrecuperável. A constatação é óbvia: só há limpeza quando alguém fiscaliza. E como fica quem vive ali?

A empresa contratada para fazer a limpeza dos abrigos – e serviço de enfermagem – deve receber, em 2015, R$ 4,8 milhões da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc). A propósito: essa empresa é a mesma que limpa prédios da Justiça. Alguém lembra de esbarrar em lixo ou de usar banheiros fétidos nos fóruns ou nos tribunais?

Ao fundo do pátio, uma simplória inscrição no muro faz lembrar que se está no João-de-Barro, uma casa especial criada em 2008 para melhorar o atendimento de uma parcela de jovens mais problemática. O nome está lá no muro, gravado a tinta. Desconectado do seu real significado, parece ser só o que restou de um projeto de remodelação de abrigos badalado pela prefeitura a partir de 2007, batizado de Figueira. Foi dele que nasceram o João-de-Barro, o Quero-Quero e os Sabiás, as casas com nomes de aves. Mais inspirador, impossível.

Quando o reordenamento da rede de abrigos de Porto Alegre foi pensado, o JB era uma das meninas dos olhos: “(...) propomos o estabelecimento de um Projeto Piloto de uma Casa de Passagem (Casa João de Barro) para adolescentes visando proporcionar a última e talvez derradeira oportunidade que muitos dos adolescentes que ingressam na rede de abrigagem terão de poder usufruir um ambiente suficientemente bom, pois os sintomas antissociais são como que uma busca, às apalpadelas, por um ambiente sadio”, diz trecho de documento da Fasc que trata do reordenamento da rede de acolhimento.

Casas nada especiais

“É necessário no tratamento de crianças e adolescentes despossuídos da vida familiar, entre outros fatores, o fornecimento de um ambiente que transmita esperança."

Donald Winnicott, pediatra e psicanalista inglês, citado em documento da Fasc

Há pouco de esperança nos abrigos João-de-Barro e Quero-Quero, justo onde deveria estar a “derradeira oportunidade”. Na rede municipal, os dois são chamados de “Casas Especiais” pelo fato de terem sido concebidos para receber uma população diferenciada. Reúnem jovens que estão crescendo zanzando de abrigo em abrigo, muitos com histórico grave de uso de drogas, envolvimento em atos infracionais e transtornos de conduta. Não estão em regime de prisão. São adolescentes não-adotados nem colocados em novas famílias. Cresceram sob os cuidados do poder público. Ou sob a ausência deles.

O Quero-Quero funciona na frente de um movimentado ponto de tráfico de drogas, na zona sul da Capital. Todas as relações possíveis são ruins. Ou os jovens são fortemente atraídos por ganhos com a venda de drogas, ou satisfazem o vício com facilidade, ou se tornam alvo de ameaças, até de morte, por parte dos criminosos que moram do outro lado da rua.

A existência ali de um órgão público, que atrai a atenção de autoridades, não agrada aos chefes do tráfico. Vale registrar que as normas de proteção à infância ditam que os abrigos devem estar inseridos nas comunidades locais, tendo a participação de pessoas dessa população no processo educativo. O que nem sempre acontece.

Na mesma manhã de abril deste ano em que estiveram no JB, autoridades encontraram no Quero-Quero o cenário de desleixo similar.

Três adolescentes estão estirados em sofás olhando para um desenho incompreensível pela falta de qualidade na imagem da TV. Outros, jogam fla-flu na "área vip", estimulados pelo cartaz que preconiza: “Quem acredita, sempre alcança”. Um recado cheio de significado para sujeitos de tantos direitos, tidos como prioridade de atenção absoluta de qualquer agente público. Mas será verdade?

Há adolescentes fumando, espalhados pelo pátio imenso, em meio a lixo acumulado, pedaços de móveis, colchões, fardos de papel higiênico jogados no chão. Uma funcionária explica que recém está assumindo e fala de um plano de atividades a serem ofertadas aos acolhidos. No pátio está o nome com a imagem da ave, pintado em uma parede para que ninguém esqueça que está nas dependências da casa especial Quero-Quero.

Devido a problemas com traficantes e a outras irregularidades, no dia 6 deste mês, o MP pediu que a Justiça desse prazo de cinco dias para a Fasc mudar o Quero-Quero de endereço. Na sexta, o pedido foi analisado pela Justiça e há 10 dias para a Fasc se manifestar a respeito dos pedidos.

POR QUE A REDE NÃO FUNCIONA?

O jogo de empurra dos problemas

Apesar de falarmos de uma área de prioridades e urgências, isso parece se refletir pouco na prática.

A história de problemas do João-de-Barro, por exemplo, existe desde que ele foi criado, em 2008, para substituir um modelo falido: o do abrigo Ingá Brita. Três meses depois de inaugurado, as inspeções do MP já apontavam irregularidades. Quando começa uma saga jurídica, um imbróglio de ofícios, petições, representações, cobranças, troca de farpas e respostas vazias que se arrasta até hoje tendo Ministério Público de um lado e prefeitura de Porto Alegre de outro. Em dezembro de 2013, o MP representou à Justiça pedindo apuração de irregularidades no abrigo e que, caso não fossem sanados os problemas no prazo de três meses, a casa fosse fechada por não dar condições dignas de atendimento aos adolescentes.

O que parecia significar uma medida contundente se esvaiu no tempo em meio à burocracia. Cinco meses se passaram até que o pedido do MP virasse ação. O processo tramita até hoje na Justiça, em fase de instrução e sem solução. Desde então, o João-de-Barro trocou de endereço e já ocorreram pelo menos outras sete inspeções no local. O resultado é o óbvio. O desleixo, o desamor e a desproteção ainda são os principais ocupantes da casa especial.

Convocada em outubro do ano passado para atuar em regime de exceção na Vara da Infância e da Juventude, a fim de realizar audiências concentradas e tentar colocar em dia ao menos a situação jurídica de quem espera um lar de verdade, a juíza Sonáli Cruz Zluhan só pensa no quanto gostaria de fechar o João-de-Barro e o Quero-Quero:

"Esses lugares não funcionam. Só refletem o que não se conseguiu fazer e reforçam o sentimento de que esses jovens não vão dar certo."

A situação se agrava quando se vê que as falhas não estão restritas às condições do JB ou do Quero-Quero. Estão dissolvidas em maior ou menor grau em toda a rede de abrigos municipal e estadual. É o que contam repetidamente as inspeções do MP sobre as casas que deveriam proteger uma população em torno de 1,3 mil bebês, crianças e adolescentes, só na Capital. E o surpreendente é que esse universo tão protegido por sigilo – previsto em lei e sempre alegado em suposta defesa da própria criança ou adolescente – só começou a ser desvendado quando dois entes de peso dessa rede de proteção passaram a debater publicamente omissões e falhas no trabalho relacionado aos acolhidos.

Foi em setembro do ano passado. O MP deu o primeiro passo, divulgando que crianças ou adolescentes abrigados na Capital e já destituídos de suas famílias não constavam no Cadastro Nacional de Adoção (CNA) por falha do Judiciário. Antes que fosse cobrado, o próprio Ministério Público revelou que quase 40% dos acolhidos não tinham sequer ação de destituição de poder familiar, que tem de ser iniciada pelo MP quando se constata que a família do abrigado não tem condições de ficar com ele. Com as descobertas, vieram medidas às pressas: MP e Judiciário criaram mutirões para revisar os casos e colocar o trabalho em dia. Foi assim que nasceu o regime de exceção comandado pela juíza Sonáli.

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