O dia 26 de setembro de 2011 seria muito importante para Ana Luiza Cunha da Costa, seis anos. Ela sopraria, à tarde, as três velinhas do seu bolo de aniversário, em uma festa na escola. A data também marcaria o início de uma fase de angústias e incertezas. Antes da comemoração, a mãe Gerciani, 39 anos, havia agendado uma consulta médica para uma avaliação de rotina. Pelo corpo, só algumas manchas roxas. Foi por causa do resultado desses exames que a pediatra ligou e interrompeu a festa da menina. Ana Luiza não teve tempo de abrir os presentes. Com o hemograma totalmente alterado, a ordem era levá-la imediatamente para o hospital. Somente dois meses após a internação tiveram um diagnóstico: aplasia medular. Logo após a identificação da doença, a sentença: dependia de uma medula nova para sobreviver.
É um tecido líquido, parecido com o sangue, que está dentro dos ossos. Esse líquido é composto por células-tronco (capazes de se transformar em qualquer célula do corpo humano) hematopoiéticas que se dividem e formam:
Para o tratamento de muitas doenças que comprometem o funcionamento da medula óssea. A necessidade deste tipo de intervenção é avaliada de acordo com o estágio de cada paciente. Veja quais são as indicações:
Após o diagnóstico, Ana Luiza foi submetida a um tratamento para estimular a retomada no funcionamento da medula. A probabilidade de dar certo era de 80%, mas a menina não respondeu à intervenção. Quatro meses depois, houve a segunda tentativa com o mesmo tratamento, desta vez com 50% de chance de sucesso. Novamente, a medula se recusou a funcionar. Era o transplante de medula óssea a última possibilidade de cura, mas para isso precisava de um doador compatível. A maior chance de compatibilidade estava no único irmão, Alex Júnior, 22 anos: 25%. Não era. Nem as campanhas realizadas para a menina nem o Registro Nacional de Doadores de Medula Óssea (Redome) apontaram um doador possível.
Gerciani, a mãe, então, ouviu sobre o nascimento do primeiro bebê programado do Brasil, por seleção de embriões, para servir de doador em um transplante de medula. Para a mãe e o pai Alex Gularte da Costa, 46 anos, essa poderia ser uma tentativa de salvar a filha. Saíram em busca de uma clínica que realizasse o procedimento em Porto Alegre.
A análise de compatibilidade é realizada por meio de testes laboratoriais específicos, a partir de amostras de sangue do doador e do receptor. Esses exames são chamados de histocompatibilidade HLA (Antígenos Leucocitários), que identificam as características genéticas de cada pessoa.
Ao buscar um doador para o transplante de medula óssea, a preferência é sempre por uma pessoa da família que seja 100% compatível. Caso não haja, opta-se por um familiar com o tipo HLA mais parecido possível ou pelo transplante de cordão umbilical, se houver algum compatível disponível. Em último caso o transplante é realizado com a doação do pai ou da mãe.
Nos casos em que não se encontra um doador 100% compatível, ou o mais próximo disto, o pai ou a mãe podem doar. Eles sempre serão 50% compatíveis cada. Porém, há uma chance maior de complicações de maior gravidade, como infecções e Doença do Enxerto Contra o Hospedeiro (DECH) - uma espécie de rejeição.
As pessoas cadastradas no Registro Nacional de Doadores Voluntários de Medula Óssea (Redome) são voluntárias. A probabilidade de se encontrar um doador compatível no banco é de 0,001%. Ou seja, uma pessoa a cada 100 mil acha esse doador no Brasil. Em países com uma maior uniformidade populacional, como a Alemanha e o Japão, é possível encontrar um doador para 85% a 90% dos receptores.
A chance de um irmão ser compatível é de 25%, ou seja, uma em cada quatro. Os riscos de rejeição entre irmãos são mínimos e, caso ocorra, podem ser contornados com tratamento.
Quando Gerciani e Alex, os pais da menina, optaram por gerar um bebê por meio de seleção embrionária, buscaram uma clínica e uma alternativa incomum para salvar Ana Luiza. Na segunda tentativa de fertilização in vitro nasceu Antônia. Não existem leis no Brasil que contemplem a seleção embrionária, mas resoluções do Conselho Federal de Medicina (CFM) servem de parâmetro ético, o que faz o procedimento ser tratado com receio pelos especialistas. Além do embate ético, a espera pela gestação e pelo crescimento de Antônia envolveu muitos riscos para Ana Luiza, que ficou desprotegida imunologicamente.
A aplasia medular é uma doença de alto risco porque todas as defesas do organismo deixam de existir. Por isso, Ana Luiza deveria ter feito o transplante em até seis meses após o diagnóstico. Sem nenhum doador compatível, os pais levaram adiante o projeto e geraram o primeiro bebê gaúcho geneticamente selecionado em laboratório para salvar um irmão. Em uma corrida contra o tempo, os médicos esperavam pelo nascimento de Antônia para que, no momento do parto, coletassem as células-tronco do cordão umbilical. Prematura, a menina nasceu no dia 25 de junho de 2013, com sete meses e meio de gestação, e a baixa celularidade do cordão prejudicou os planos. Precisavam, então, aguardar Antônia completar um ano para ser submetida à coleta da medula óssea. A espera fez de Ana Luiza uma criança privada dos hábitos mais corriqueiros da infância: andar de roda gigante, correr no parquinho e comer algodão doce. Qualquer tombo, qualquer arranhão, um resfriado sequer poderiam desencadear uma doença fatal. Foi à base de transfusões de sangue e plaquetas que Ana Luiza manteve a vida.
Depois de diagnosticada uma doença cujo tratamento é o transplante de medula óssea, em geral, começa a busca por um doador compatível. Saiba quais são os fatores que determinam o sucesso nesta procura:
Compatibilidade do sistema HLA
A variabilidade genética é muito grande, principalmente no Brasil, onde há mais miscigenação. Quanto maior a variação do HLA, mais difícil é encontrar uma pessoa com o gene parecido.
Miscigenação dificulta busca de brasileiros por um doador
Encontrar um par perfeito, aquela pessoa que tem o sistema imunológico igualzinho ao do paciente é uma tarefa desigual devido à grande miscigenação - mistura de raças -, o que dificulta ainda mais a busca por um par perfeito. Veja como é a distribuição étnica do cadastro brasileiro
Número de doadores
Além do fator de compatibilidade, o número de doadores cadastrados é baixo. Dos 203,4 milhões de brasileiros, apenas 3.628.665 são doadores voluntários.
No Brasil, a cada 55 pessoas, uma é doadora
Crescimento de doadores voluntários no Brasil
Desistência
Estudos comprovam que campanhas em prol de uma causa não são a melhor alternativa porque geralmente as pessoas se sensibilizam por um caso isolado, se cadastram e esquecem que vão permanecer no banco por muitas décadas. Anos depois, quando são chamadas, podem recusar a doação. No último semestre, 6% das pessoas do banco desistiram de doar.
Cadastro desatualizado
Um dos problemas do cadastro brasileiro é a falta de comprometimento do doador voluntário de medula óssea, segundo Liane Daudt, chefe do Serviço de Hematologia Clínica e Transplante de Medula Óssea do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. A partir do momento em que uma pessoa se cadastra no Redome, pode ser chamada para doar até os 60 anos de idade. Se ela muda de endereço e telefone e não atualiza os dados pode vir a ser compatível e não ser localizada. Atualizar o cadastro é simples. Basta acessar https://www1.inca.gov.br/doador/ e preencher os dados no site mesmo.
Os 10 países com maior número de doadores
O Brasil ocupa a terceira posição em números absolutos. São 3,6 milhões de doadores, atrás dos Estados Unidos (7,9 milhões) e da Alemanha (5,7 milhões). Veja em que lugar no ranking fica o Brasil, considerando o percentual da população:
Como ser um doador?
Veja onde você pode se cadastrar
Saiba quais são os locais em que os transplantes são realizados
Semanas depois de Antônia completar um ano, foi dado início à coleta da medula. Por se tratar de um bebê, o procedimento foi dividido em duas etapas com um intervalo de um mês entre as duas intervenções. Quanto mais a data do transplante se aproximava, mais tenso ficava o cenário: às vésperas da internação, Ana Luiza contraiu o primeiro resfriado em três anos. Com febre alta, foi hospitalizada às pressas. Tudo parecia distanciá-la da cura. Com o organismo muito debilitado, não seria possível iniciar os preparativos para o transplante. Até que, no dia 29 de agosto de 2014, de batom, tiara e rímel, Ana Luiza finalmente recebeu o líquido salvador. No próprio leito do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, os 260 ml de medula óssea da caçula penetraram o corpo da irmã Ana Luiza rumo à libertação de uma aplasia medular que a confinou a uma redoma enquanto crescia. Apesar de um grande passo, a família ainda tinha uma enorme batalha pela frente.
Não há fila de espera. A busca por um doador é imediata. Um dos maiores problemas do transplante de medula óssea é a espera por um leito.
Alogênico
A medula óssea vem de um doador previamente selecionado por testes de compatibilidade, como familiares e voluntários cadastrados no Redome. Normalmente, o transplante é feito como o de Ana Luiza, por meio do catéter, como se fosse uma transfusão de sangue.
Autólogo
A medula óssea é retirada do próprio paciente, armazenada e reinfundida nele mesmo após altas doses de quimioterapia que têm por finalidade eliminar células doentes para dar lugar à medula óssea que será reconstituída. Aqui, a possibilidade de rejeição não existe. Este é o mais realizado no mundo todo e é considerado simples e seguro, só que não serve para todos os tipos de doença.
Singênico
É o transplante de medula óssea entre irmãos gêmeos idênticos. Neste caso, o paciente sempre terá um doador compatível, pois o irmão possui características genéticas idênticas as dele. Por esse motivo, é bastante raro.
Tradicional
Deitado de bruços, o paciente recebe anestesia geral. Durante cerca de 90 minutos, dois médicos utilizam uma agulha para retirar o sangue rico em células-tronco que compõe a medula localizada no osso da bacia.
Periférica
Como um número muito pequeno destas células-tronco circula na corrente sanguínea, o doador recebe uma medicação injetável, que aumenta a quantidade das células a serem coletadas. Este sangue enriquecido é retirado da veia de um dos braços, passa por um equipamento que retém apenas as células-tronco e depois retorna para o doador com todos os outros elementos, como leucócitos, glóbulos vermelhos e plaquetas. O procedimento leva cerca de três horas.
Cordão umbilical
É mais uma possibilidade de transplante, mas ainda são poucos os hospitais no Brasil treinados e equipados para a coleta de sangue de cordão umbilical. O Hospital de Clínicas é o único da Região Sul e um dos únicos no país a realizar o procedimento. Cabe à gestante perguntar ao seu obstetra antes do final da gestação sobre esta possibilidade ou consultar o hemocentro mais próximo. Os cordões umbilicais estocados em bancos públicos são de uso gratuito. O transplante por este meio tende a ter grande sucesso quanto maior for o número de células presentes no cordão coletado. As crianças são as mais beneficiadas, já que precisam de um volume menor de medula para o transplante. A modalidade ainda não é frequente no Brasil devido ao alto custo do procedimento. É uma alternativa importante para quem não tem outra opção melhor.
Imagens: Bruno Alencastro
São inúmeras as confusões quando o assunto é transplante de medula óssea. Veja o que é verdade e o que é mentira, clicando para saber a resposta.
Impossibilitada de levar roupas e objetos pessoais para o hospital, a mala de Ana Luiza foi recheada por brinquedos. Estava se preparando para preencher o tempo de uma longa internação. Foram 61 dias trancafiada em um quarto com hábitos de higiene rigorosos. Nesse tempo, tomou antibióticos para curar a febre, foi submetida à quimioterapia, recebeu a medula óssea da irmã e começou a primeira etapa da recuperação. A doença estava longe de ser vencida. Por 20 dias, aguardaram a pega da medula _ jargão médico para definir a hora em que um novo sistema imunológico passa a orquestrar o corpo do receptor e é retomada a produção das células do sangue. Embora a intervenção tenha sido um sucesso, os riscos da recuperação só aumentavam e a cura seguia distante.
Apesar de ser a única salvação para o paciente diagnosticado com algumas doenças, o transplante de medula óssea é uma intervenção com muitos riscos. Veja quais:
50% das pessoas
morrem antes de se completar toda a busca por um doador e liberação de leito no Brasil.
50% das pessoas
que fazem o transplante com doador voluntário morrem.
20% das pessoas
que recebem a medula de um parente morrem.
Ana Luiza dividia o quarto do hospital com outra criança e tinha apenas a mãe como acompanhante. Foram dois meses apartada do mundo e da irmã Antônia. Amenizava a saudade por meio de fotos e vídeos diários que os parentes enviavam. Nos seis dias que se seguiram ao transplante o cabelo da menina começou a cair. Por causa disso, Ana Luiza pediu para que raspassem a sua cabeça. Foi um período de dor e transformação amenizados por lenços e tiaras coloridas. No hospital, a menina começou a ser alfabetizada pela mãe, que é professora. Ao final da internação, comemorou o aniversário de seis anos e começou a contar nos dedos das mãos os dias que faltavam para a alta.
Tempo no hospital
De 40 a 60 dias.
Visitas
O número é limitado. Além do acompanhante fixo, que é a pessoa quem fica 24h com o paciente no hospital, o transplantado pode receber a visita de duas pessoas, que se alternam. Para entrar no quarto, elas não podem ter gripe, resfriado, tosse, dor de garganta, infecção, feridas ou qualquer doença.
A visão de Gerciani durante a recuperação da filha
Infecções
Enquanto a medula não está funcionando, há um risco muito grande de infecção e sangramento, mesmo antes de transplantar. O período crítico é nos primeiros três meses após o transplante. Quase todos os pacientes precisam tomar antibióticos para evitar infecções, que continuam sendo possíveis nos dois primeiros anos após o transplante.
Cuidados
Para evitar qualquer contato com o mundo externo, o hospital cria um ambiente controlado. Veja abaixo:
Medicação
Pelo menos oito tipos de medicamentos, incluindo imunossupressores e remédios para pressão, náuseas, vômitos e gastrite.
Reconstituição do sistema imunológico
de 12 a 24 meses.
Fazia sol quando Ana Luiza deixou o hospital, no dia 3 de outubro de 2014. A roupa que marcaria o contato com o mundo novo já estava escolhida há semanas: vestido preto com bolas brancas, casaco bege e, na cabeça, um lenço com a estampa petit-pois. Três quilos mais magra do que na internação e careca, Ana chegou em casa, em Gravataí, na região metropolitana de Porto Alegre, às 11h, com o bom humor de sempre. Uma festa surpresa, com atraso de uma semana, a esperava para comemorar o aniversário. Regressava ao lar, mas também voltava para mais um período de reclusão, intercalado por consultas médicas semanais.
Antes da alta, uma enfermeiro e um assistente social visitam a casa do paciente. Os profissionais orientam a família sobre a organização da moradia, cuidados com a limpeza e possíveis riscos (como parede mofada e má circulação de ar). A assistente social também faz uma entrevista com o paciente e seus familiares para conhecer a situação socioeconômica. Se necessário, o profissional buscará, junto com a rede de apoio social, uma forma para poder auxiliá-los com o transporte para as consultas e locais de permanências em Porto Alegre, por exemplo.
O paciente receberá alta somente quando a medula óssea estiver produzindo as células do sangue. Aqueles que são de outros Estados, ou não moram num raio de 70 quilômetros do hospital, não voltam para casa nos três primeiros meses e devem permanecer em alguma residência próxima.
O maior risco de contrair infecções é nos cem primeiros dias após o transplante de medula óssea, por isso a necessidade de o paciente ficar próximo ao hospital em que realizou o procedimento. Isto facilita o atendimento especializado imediato.
Consultas
Após a alta, o paciente precisa ir até o hospital uma vez por semana para acompanhamento e realizar exames.
Catéter
Geralmente, tira-se na alta. No caso de Ana Luiza, como a família sempre foi muito cuidadosa e ela receberia medicações na veia, optou-se por deixá-lo mais um tempo.
Máscara
Ela deve ser mantida quando o paciente estiver em contato com outras pessoas.
Mãos
Lavar as mãos é tão importante quanto usar a máscara, porque muitas doenças são transmitidas por meio do contato manual.
Pele
Os raios solares devem ser evitados durante os 12 primeiros meses após o transplante. Por isso, é necessário que o paciente evite sair de casa nos horários em que o sol está mais forte. É importante usar chapéu ou sombrinha e passar protetor solar com fator 30.
Alimentos
Além de checar a data de fabricação e validade de todos os alimentos, deve-se observar o odor deles, conferir se tem a presença de insetos, selecionar os vegetais e frutas mais frescos e evitar salgadinhos e sobremesas não refrigeradas. O paciente deve se privar de uma série de alimentos, como carnes cruas e produtos não pasteurizados.
Animais
O paciente não pode manter contato com animais até a liberação do médico.
Existem cinco casas no Rio Grande do Sul que recebem transplantados de medula óssea, três em Porto Alegre e duas em Santa Maria. Os pacientes que moram em cidades distantes do hospital ficam nas casas de apoio por aproximadamente 60 dias após a alta do hospital.
Os três anos em que Ana Luiza viveu enclausurada alimentaram o sonho de brincar ao ar livre. A ida no parquinho para andar de roda gigante, a vontade de comer algodão doce, brincar com outras crianças e passar as férias na praia compõem a lista de desejos ainda inatingíveis. A cura total é esperada após cinco anos do transplante, em 2019. Apesar do período mais crítico ser nos primeiros cem dias, a recuperação é longa e nem todas as atividades podem ser feitas de imediato. Nestes três meses mais críticos, Ana Luiza teve de ser internada duas vezes. Na última permaneceu em estado grave devido a uma infecção no catéter, às vésperas do último natal. Em 2016, deve refazer todas as vacinas como um passaporte simbólico para um recomeço. Só então estará liberada para frequentar a escola e ter contato com outras crianças. Serão, enfim, os primeiros passos de Uma vida para Ana Luiza.
O transplantado precisa redobrar os cuidados e estar ciente de alguns detalhes para toda a vida.