Anotações

Falamos muito pouco sobre a morte. A finitude nos intimida. Uma menção casual sobre o assunto costuma gerar comentários de reprovação à volta: "Ai, credo", "bate na boca", "não fala que atrai coisa ruim". Pensava nesta reportagem havia anos e encontrei resistência pelo caminho. "Para que falar sobre isso?", surpreendiam-se as pessoas. Eu devolvia: "Por que não falar?" Ao mesmo tempo, sempre justifiquei que seria um trabalho muito mais sobre a vida do que sobre a morte. Pacientes em cuidados paliativos, apesar de todas as limitações e do intenso sofrimento, estão vivos. Vivendo, têm desejos. Que vontades seriam essas? "Pode-se viver com a morte dentro / e encher-se de vida até morrer", dizem os versos do meu amigo Celso Gutfreind, psicanalista e escritor.

Com autorização do Serviço de Bioética do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, acompanhei por um ano a rotina do Núcleo de Cuidados Paliativos. Frequentei as reuniões da equipe multiprofissional (formada por médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, nutricionistas e farmacêuticos) e tive liberdade para conversar com pacientes e familiares.

Bastidores da reportagem e reflexões sobre a vida e a morte

Vivendo

TextoS

Larissa Roso

larissa.roso@zerohora.com.br

IMAGENS

Júlio Cordeiro

julio.cordeiro@zerohora.com.br

Trecho do poema "Atualizações", do livro "Em Defesa de Certa Desordem", do psicanalista Celso Gutfreind.

Toda vez que chegava ao núcleo, antes de começar as abordagens, verificava um mural com os nomes dos ocupantes dos leitos. Questionava os profissionais em serviço sobre as condições de cada doente internado e me certificava de que não atrapalharia procedimentos conduzidos pelos técnicos em enfermagem. Entrava nos quartos, me apresentava e, sempre que percebia haver receptividade, ficava para conversar. Me surpreendi, muitas vezes, com a vontade das pessoas de interagir — falar dos filhos, dos companheiros, do emprego, da casa. Da vida.

Eu perguntava sobre desejos, vontades, sonhos. Em respeito a quem não estava preparado para tratar da morte, não mencionava a palavra "últimos", a menos que essa objetividade partisse de meus interlocutores. Apesar do jaleco branco que vestia, em acordo com as regras da instituição — o que incentivava alguns a me chamarem de "doutora" —, sempre deixei clara a minha formação como jornalista. Destacava também a ligação com o Laboratório de Pesquisa em Bioética e Ética na Ciência, grupo que fui convidada a integrar antes de iniciar a apuração da reportagem.

Conheci dezenas de homens e mulheres com câncer. Quase todos já morreram neste momento em que o especial Últimos Desejos é publicado. Impactou-me a acelerada progressão de boa parte dos casos. Entre o nosso primeiro contato e o óbito do paciente, convivíamos por poucos dias. Fiquei impressionada também com os doentes que pareciam sentir a proximidade do desfecho. Há pacientes terminais que silenciam, como se estivessem concentrados na assimilação do fim — um ensimesmamento, na descrição dos médicos. Outros se desesperam, querem amparo, companhia, a mão de alguém para segurar.

São variadas e imprevisíveis as reações diante do desconhecido, da morte. Aprendi com todas elas.

O último sorriso

As 12 horas de trabalho dentro do Hospital de Clínicas de Porto Alegre no dia 9 de janeiro, à espera do reencontro entre João Batista Lemes e o pai, depois de 23 anos de distância, renderam 1,7 mil imagens na câmera do repórter fotógrafico de Zero Hora Júlio Cordeiro. Repetidas vezes, ao longo dos sete dias em que convivemos dentro do Núcleo de Cuidados Paliativos, João Batista me questionou sobre as imagens.

— E as fotos? Ficaram bonitas?

Quando ele perguntou se poderia obter algumas cópias para guardar como recordação, eu disse prontamente que sim — mas adverti que, para fornecê-las, teria de aguardar até a publicação da reportagem. No mesmo instante me dei conta de que isso não seria possível. Sem previsão de publicação, a matéria seria concluída, provavelmente, depois da morte do agricultor. Decidir agilizar o processo.

Tratei de providenciar as impressões em um estúdio perto de casa. Inquieta, pensava: que impacto as imagens provocariam naquele homem emagrecido e de feições tão agredidas pelo câncer? Não seria um choque forte demais se enxergar nos retratos da fase terminal? Concluí, para resolver logo o impasse, que não tinha como escapar do que fora acertado com ele. Escolhemos, Júlio e eu, quatro imagens, destacando os personagens mais importantes que o visitaram no hospital: a mulher, as duas filhas, o cunhado, o irmão e o pai.

João Batista já estava muito abatido quando levei as fotografias até o Clínicas, no entardecer da quarta-feira 14 de janeiro. Havíamos nos despedido na véspera — concluí a série de entrevistas quando percebi que falar estava se tornando uma tarefa penosa para ele. Entreguei o envelope para uma enfermeira e saí.

Pelos membros da equipe, soube a reação ao conteúdo da minha correspondência. João Batista deparou com as fotos ao acordar. Pediu que o cunhado Pedro as afixasse no mural disponível no quarto, na parede em frente à cama. Sorriu pela última vez.

A jornalista Larissa Roso conversa com João Batista.

Uma das quatro fotos presenteadas ao paciente pela reportagem. João Batista pediu para afixá-las no mural do quarto que ocupava no hospital.

Frágeis

Refleti sobre a minha própria terminalidade ao longo do último ano. Diante de pacientes depauperados no Núcleo de Cuidados Paliativos, me perguntava: e se fosse eu? Como me sentiria no lugar deles? Será que conseguiria falar abertamente sobre a morte? Qual seria o meu último desejo? Seria capaz de me conformar com a impossibilidade de cura? Falei com homens e mulheres jovens e idosos. Encarei mulheres da minha idade, que até poucos meses antes eram autônomas, capazes de administrar a própria vida — talvez nem fossem existências plenamente felizes ou livres de revezes, mas não existia então o peso da doença grave. É claro que eu poderia estar no lugar delas.

O fator proximidade é determinante para abalar a tranquilidade com que tratamos do tema. Nunca sofri grandes perdas perto de mim, além das previsíveis, inevitáveis com o correr dos anos — já me despedi de todos os meus avós. Mas ainda que nenhum imprevisto impensável tenha me atingido até aqui, o simples passar do tempo força uma reflexão: que desafios o envelhecimento dos meus pais vai impor a nossa família?

Enquanto frequentava intensamente o Núcleo de Cuidados Paliativos, percebi a fragilidade da vida também do lado de fora do hospital. Acompanhei o diagnóstico de câncer e a morte rápida de uma colega de redação, a lenta agonia de uma ex-colega que enfrentou com otimismo um tumor no ovário com metástases, o resultado à primeira vista amedrontador de um exame realizado por minha mãe depois de décadas de tabagismo. Eu mesma levei um susto em uma checagem de rotina.

— Não vai ser nada — repetiam amigos tentando me tranquilizar antes da biópsia.

— E se for? — questionava eu.

Não era. Mas e se fosse?

Sonhando com a morte

Até profissionais experientes, habituados a encarar casos extremos de debilidade física, estavam chocados com o aspecto daquela mulher de 40 e poucos anos. Antes que eu entrasse no quarto para conhecê-la, advertiram-me sobre a magreza extrema da paciente.

Arrisco dizer que, na fase final da evolução de um câncer, ela não pesava mais do que 30 quilos. Exibia sulcos profundos na face e no pescoço. Apesar da voz arrastada pelo efeito dos medicamentos, estava lúcida e orientada, conseguindo conversar. Falou-me do início do mal-estar e das dores, do périplo por diversos médicos até o diagnóstico correto. Ciente da gravidade do caso, ela sabia ter uma doença incurável.

Dois dias depois desse encontro, tive um sonho em grande parte relacionado ao impacto que aquela visão me causara — o abatimento provocado por uma forte infecção na garganta deve ter contribuído. Sonhei que me restavam apenas 15 dias de vida. Eu tinha plena consciência desse pouco tempo de que dispunha. Nesse enredo onírico, alguém me olhou e comentou:

— Você não parece bem.

Tranquila, justifiquei:

— É que eu já vou morrer.

Despedida

No último dia de trabalho antes das férias, em fevereiro, fui ao hospital para me despedir de Santa Enilda Miranda da Silva, a senhora que desejava voltar para casa retratada nesta reportagem. Em poucos dias de convivência, nos apegamos. Conversávamos, ríamos, comentávamos as notícias das edições de Zero Hora e do Diário Gaúcho que eu levava para ela se distrair.

Santa estava cochilando quando entrei pela primeira vez no quarto. Dormia também quando fiz uma segunda tentativa, mas então a filha Karine fez questão de acordá-la. Tinha medo de que a mãe a repreendesse depois. A idosa sorriu ao me ver. Revelei o motivo da visita: estava ali para dar tchau. Ela demorou até conseguir falar. Com uma traqueostomia (orifício cirúrgico feito no pescoço para facilitar a respiração), sentia dor e desconforto na garganta. Fez força. A voz da  paciente internada havia seis meses saiu num murmúrio:

— Bom pra ti, ruim pra mim. Vou ficar com saudade.

Conversamos um pouco. Desanimada, ela disse que não tivera mais novidades sobre uma possível alta — sua maior vontade era reunir os filhos e os netos para uma refeição. Pedi para tirarmos uma foto, e ela prontamente aceitou. Karine arrumou o cabelo da mãe antes de fazer o registro com o celular.

Falei que iria até a casa da família no alto do Morro da Cruz, quando voltasse de viagem, caso ela já tivesse deixado o hospital. Sentaríamos no pátio para conversar, algo de que ela sentia falta depois de tanto tempo sem pisar na rua. Santa ficou feliz com a perspectiva.

Pressenti que ela não estaria mais no leito 975B quando meus 20 dias de descanso se encerrassem. Nem ali, nem em casa.

Santa morreu oito dias depois da nossa despedida.

Um dos cadernos em que Santa escrevia quando tinha dificuldade para falar. À direita, a paciente em duas das poucas fotos que restaram com as filhas.

Quanto tempo resta?

Me surpreendi diversas vezes com a dificuldade que grande parte dos médicos enfrenta para falar objetivamente sobre a terminalidade com pacientes e familiares. Anos de graduação e residência não garantem o desenvolvimento automático dessa habilidade. A morte atemoriza até os mais experientes. Existem técnicas e cursos para ensinar a abordagem de más notícias: como contar que a doença não tem cura, que a partir de agora o tratamento será apenas paliativo, que a morte está próxima? Há médicos que, aflitos com a difícil missão, choram.

Evita-se fazer previsões sobre a sobrevida. As reações de cada um aos medicamentos e a progressão da doença tornam cada caso único. Mas a questão se impõe com frequência: quanto tempo resta?

Uma senhora na faixa dos 60 anos, acompanhando o marido internado no Núcleo de Cuidados Paliativos, afligiu-se com a estimativa dada pelo médico.

— Ele tem poucos dias de vida — disse o oncologista.

Mentalmente, a aposentada deu início a uma dolorosa contagem. Debateu-se com a informação, temia perder o companheiro durante qualquer breve ausência. Resolveu pedir esclarecimentos. Saiu atrás do especialista:

— Mas quanto é "poucos dias de vida" para vocês, médicos?

Há pacientes que desviam dos prognósticos, surpreendem e sobrevivem por meses, anos. Vi pessoas desenganadas que reagiram e receberam alta. Outras sucumbiram a uma piora súbita nas vésperas da volta para casa. Testemunhei a imprevisibilidade da vida e da morte emocionando os funcionários: por vezes, era o último fôlego de sobrevida permitindo a reaproximação de parentes e a realização das últimas vontades. Em outros momentos, perdas em série sobrecarregando a equipe. Em apenas uma semana do mês de junho, morreram seis pacientes do núcleo.

— Todo mundo vai morrer, eu sei. Mas eu acho que nunca vou me acostumar com a morte. Não aprendi isso ainda — desabafou a técnica em enfermagem Reni de Fatima do Carmo, atuando no Núcleo de Cuidados Paliativos desde o início dos trabalhos, em 2007.