O pedido

de Vanilda

Olhos presos no teto escuro, Linauro Torres, 60 anos, tinha dificuldade para adormecer, temendo não escutar o toque do celular. Afligia-se com o risco de estar ausente no momento em que a mulher sucumbisse às complicações de um câncer maligno na vesícula biliar que se alastrara para o fígado.

– Passei a vida inteira com ela. E se ela se for enquanto eu não estiver?

Linauro relembra como conheceu Vanilda e os mais de 30 anos que passaram juntos.

Depois de duas noites na casa de parentes, o pescador decidiu não deixar mais o Hospital de Clínicas, acomodando-se para os cochilos em um sofá ao lado do leito 969. Aguardava uma fresta de lucidez na inércia de Vanilda, 52 anos. Sonolenta, a pescadora observava os interlocutores por poucos segundos antes de fechar os olhos novamente. Linauro queria ouvir as palavras finais da amada. Ansiava por realizar um último desejo dela. Estava disposto a atender a qualquer pedido que ela externasse.

– Nêga? Fala comigo, Nêga – insistia ele, sem resposta.

Aos oito anos de idade, Linauro conheceu e embalou a futura companheira, então um bebê de oito meses – moravam em residências vizinhas em Araranguá (SC), e a proximidade contribuiu para que a amizade se convertesse em namoro quando Vanilda atingiu a adolescência. Para driblar a vigilância dos pais, o casal escapou numa noite de chuva intensa, refugiando-se com um irmão dele. O esconderijo foi descoberto no dia seguinte. Quando as famílias enfim concordaram com o casamento, o pai de Vanilda conduziu os noivos, de carroça, até o cartório. Tiveram três filhos e sete netos.

Emergindo das lembranças, em uma conversa no hospital na véspera da morte de Vanilda, o aposentado retirou do bolso a carteira de identidade dela.

– Era muito bonita. Você olha para ela naquela cama e não diz que é a mesma pessoa – lastimou, mostrando o documento. – Agora só um milagre de Deus. Que Ele desça as mãos sobre ela.

Familiares lotaram o quarto durante a breve internação da pescadora no Núcleo de Cuidados Paliativos – chegaram a ser 18 visitantes ao mesmo tempo. Distribuíam-se ao redor da cama, falando aos sussurros, resignados, esperando. Horas antes do falecimento, aproveitando uma rara ocasião em que ficou sozinho, Linauro encostou a cabeça no peito da mulher. Em voz alta, repassou a trajetória conjunta: recordou alegrias, desavenças, momentos de calmaria e percalços dos mais de 50 anos de convivência. Agradeceu pela devoção com que ela o alimentou e banhou depois de um acidente com fratura exposta que lhe deformou o braço. Pediu perdão por faltas antigas, pelo tempo excessivo dedicado ao trabalho. Apesar da anotação feita por um membro da equipe assistencial no prontuário naquele mesmo dia – “irresponsiva” –, o pescador quis acreditar que ela conseguia escutá-lo e compreendê-lo.

– Nunca vou pôr outra pessoa no seu lugar dentro da minha casa – prometeu ele.

Vanilda não acordou mais. Faleceu por volta das 7h de 8 de maio, na companhia do marido e dos filhos. Linauro afagava o rosto da mulher no momento em que o ruído da respiração cessou.

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