Em 4 de dezembro de 1985, morreu o maior fenômeno de popularidade que a cultura gaúcha já produziu. Trinta anos depois, ZH refaz os passos de Vitor Mateus Teixeira.

Há 30 anos, mais de 50 mil pessoas seguiam o cortejo fúnebre do artista mais popular da história do Rio Grande do Sul."Extensas filas de fãs, muitos chorando, acotovelaram-se para ver o ídolo no velório, realizado no Estádio Olímpico", descrevia ZH em um caderno de quatro páginas dedicado à cobertura do sepultamento de Vitor Mateus Teixeira, o Teixeirinha. "No enterro, houve histeria e empurrões, (...) e a família teve dificuldade para se aproximar do caixão no Cemitério da Santa Casa", assinalava a reportagem, que tentava dimensionar a popularidade do cantor e, ainda, abordar a turbulência de seus últimos anos de vida.

Em 1983, Teixeirinha passou por uma dolorida – e midiática – separação de Mary Teresinha, seguida da reinvenção da carreira sem a acordeonista que o acompanhara desde 1961. O sucesso de trabalhos como o disco Guerra dos Desafios (1984), em parceria com Nalva Aguiar, contrastava com os problemas de saúde – um infarto, em 5 de janeiro de 1984, e o tumor nas glândulas linfáticas que o levaria à morte em 4 de dezembro de 1985, mesmo dia em que, três anos antes, morrera Gildo de Freitas, um de seus mestres, parceiros e, depois, inimigo público.

Quatro de dezembro se tornava um dia sombrio para o gauchismo. Era também momento de reconhecer – e, para muitos, se surpreender com – a capacidade de mobilização em torno de Teixeirinha. Se foi acolhido por milhares de fãs, que fidelizou em seus mais de 60 discos e 12 filmes, além de programas de rádio de grande audiência, o astro do regionalismo também foi vítima de incompreensão e algum preconceito por parte das elites intelectuais do país.

Tudo começou quando Coração de Luto (1960), melancólica toada autobiográfica que se transformou em fenômeno, um dos maiores da indústria do disco no Brasil, foi tachada por detratores de "churrasquinho de mãe" – debochada leitura do "causo de morte" de Ledurina, que desmaiou (ela sofria de epilepsia) sobre uma fogueira no pátio de casa.

Tudo terminaria, de certo modo, naquela demonstração massiva de idolatria relatada pela imprensa três décadas atrás.

Enterro teve trovas e homenagens musicais

Teixeirinha não viveu para ver seu nome se tornar cult. Após a sua morte, conforme o tempo passava, estudos sobre sua obra foram ganhando as universidades, homenagens em jornais e TVs revelaram admiradores das mais variadas vertentes e influências, projetos de shows e até exposições foram sendo realizados com a incorporação de artistas de prestígio irrestrito. O distanciamento permitiu que seu trabalho fosse reavaliado pelo público que, antes, não o aceitava – ou simplesmente o ignorava.

– É um dos cantores mais afinados que já vi – define o músico Luiz Carlos Borges. – Sua voz é constante, não vacila, tem profundidade e uma força de penetração rara.

– Sua popularidade foi decisiva para abrir o caminho que outros artistas percorreriam depois. Foi o grande embaixador do regionalismo – acrescenta o produtor Ayrton dos Anjos.

Hoje, boa parte de seus álbuns está disponível em CD. Seus filmes não mudaram de status com o passar dos anos, mas sua existência, como exemplo de um cinema popular que deu certo, só enriquecem o mito em torno do grande artista: não houve, em seu tempo nem depois, um causo de vida como o de Teixeirinha.

Miro Soares como Teixeirinha no filme Coração de Luto

"Vinha vindo da escola
quando de longe avistei
o rancho que nós morava
cheio de gente encontrei
antes que alguém me dissesse
eu logo imaginei
que o causo era de morte
da mãezinha que eu amei.
(...)
O que me resta na mente
minha mãe é o teu vulto
recebas uma oração
deste filho que é teu fruto
que dentro do peito traz
o teu sentimento oculto
desde os nove anos tenho
o meu coração de luto."
Coração de Luto

O precursor da música regionalista do Sul foi o catarinense Pedro Raymundo, filho de um pescador do Imaruí (SC) que desembarcou em Porto Alegre, encantou-se com o folclore local e passou a vestir bombachas, lenço no pescoço e um chapéu quebrado na testa para animar o povo com seus xotes e valsas alegres que consagraram a imagem do gaúcho fanfarrão. Isso nos anos 1930 e 40, época em que o jovem órfão Vitor Mateus Teixeira vivia de empregos temporários e alguns subempregos entre a região de Taquara e a Grande Porto Alegre, para onde se mudou após a morte da mãe.

Ledurina morreu em 1936, quatro anos após o infarto fulminante que causara a morte de Saturnino, o pai de Teixeirinha. Criado por um tio, depois pelas primas, ele usou a música para cantar experiências pessoais que variavam entre as dolorosas lembranças da infância e os feitos de gaudério valente tão apreciados pelos admiradores da música folclórica tradicional. Diferentemente de Pedro Raymundo, foi um homem da era do LP, o que ajudou a levar sua música aos rincões mais distantes do país. Gildo de Freitas, apontado como o astro do gauchismo intermediário entre os dois, tinha o talento dos grandes improvisadores e o gênio do poeta popular espontâneo, de formação capenga mas instinto criativo impressionante. Não tinha, no entanto, a disciplina para se tornar um artista de projeção nacional.

Teixeirinha trabalhou no Mercado Público da Capital, foi peão de fazenda na Zona Norte e carregador de malas no centro de Porto Alegre antes de se estabelecer como operário de máquinas pesadas do Departamento de Estradas de Rodagem (Daer) – época em que começou suas andanças pelo Interior, fazendo sua fama em bailes, desafios de trova e programas radiofônicos. Essas experiências foram fundamentais para moldar a personalidade do sujeito batalhador e, por assim dizer, conhecedor dos anseios populares.
Suas primeiras composições já reservaram alguns dos maiores sucessos de toda a sua carreira: as fandangueiras
Briga no Batizado, Xote Soledade e Gaúcho de Passo Fundo – além de Coração de Luto. Em todos os casos, o canto e as letras são identificados com o Rio Grande do Sul, assim como a própria vestimenta de Teixeirinha. Contudo, seu regionalismo transcendia as fronteiras do Estado.

Teixeirinha em três capas de discos: o gaúcho, o cantor romântico e o homem do cinema

Não é correto classificá-lo como tradicionalista. Autor de tangos, rancheiras, guarânias e milongas campeiras, mas um cantor e compositor mais identificado com a música de matriz caipira, sertaneja, ele jamais foi benquisto em festivais nativistas ortodoxos. Houve momentos em que (capas de discos e letras atestam) foi um intérprete romântico – algo próximo ao que acabou classificado como brega. São dele hinos do gauchismo como Querência Amada e Tropeiro dos Pampas, mas também estão na mais alta conta dos fãs valsas, serestas, toadas e baladas como Mocinho Aventureiro e O Pobre João. A imagem e o discurso de Teixeirinha são de um gaúcho, mas sua música é, antes disso, brasileira. Não pode ser reduzida a rótulos de gênero.

 – Ele tinha era um instinto criativo sem limites – recorda o amigo Jorge Brol, que o conheceu pelas andanças do músico em Guaporé, estreitou contato em Passo Fundo e depois, quando morava no Nordeste, o hospedou em turnês nos anos 1970 e 80 (seria lembrado, em reportagens, como o parceiro de pesca e caça que o presenteou com um revólver com cabo de ouro).

– Teixeirinha sentava e escrevia uma música com a facilidade de quem fazia uma trova. Em cinco minutos, tirava uma letra – completa.

"Domingo de tardezinha, eu tava de ocasião
recebi um convite, que levasse o meu violão
pra comer doce de galinha e assado de leitão
era um grande batizado na casa do seu Adão.
Eu cheguei no batizado, estava grossa a brincadeira
dezoito mulheres casadas e 35 solteiras
fizeram roda da sala, deram viva pro Teixeira
eu disse comigo mesmo 'Hoje eu forro a cartucheira'.
Toquei a primeira marca, já me deram um beliscão
a Odete e a Maria vieram me dar um apertão
a Tereza e a Romirta me deram dois abrações
e a Laurinha, de ciúme, se agarrou no violão.
A Nair e a Celina me abraçaram no mesmo som
a Carmem e a Zoraidinha disseram 'O Teixeirinha é bom'
a Cecília e a Janete me beijaram e deram o tom
e as velhas gritaram do canto: 'Ô, comedor de batom'. (...)"
Briga no Batizado

A letra de Briga no Batizado mostra que, além de falar a língua do povo, Teixeirinha sabia usar humor em suas composições. Seus xotes botavam a massa para dançar nos bailes do Interior e popularizavam expressões como "comedor de batom", graças a essa canção, no fim dos anos 1950.

Ele também dedicou versos a Getúlio Vargas (24 de Agosto) e a Carmem Miranda (Adeus Carmem Miranda), aos motoristas (Hino ao Motorista) e aos estudantes (Hino ao Estudante), Minas (Linda Minas Gerais) e Rio Branco, no Acre (Adeus Rio Branco), além de vários municípios gaúchos, amores, filhas, seu pai e até ranchinhos pelos quais passou. Compunha o que sentia a partir do que vivenciava – traço marcante entre os músicos que popularizaram a música regionalista do Sul.

Até encontrar Mary Teresinha, ele dividiu o palco com diversos parceiros. Walderedo Pereira, o Pereirinha, talvez tenha sido o primeiro gaiteiro fixo a acompanhá-lo, ainda em Taquara. Mais comum, antes de se encantar por Mary, era variar instrumentistas e repentistas ao seu lado, aproveitando a vida mambembe que manteve durante a década de 1950.

Com Gildo de Freitas, a parceria foi especial.

Com Gildo de Freitas (de costas) e, no alto, à esquerda, Nico Fagundes

"Mandei afiar minha adaga de S
dessas que estremecem no pulso do macho
e vou te mostrar que eu entendo da esgrima
destorço por cima, te corto por baixo.
Marca o dia, a hora e o lugar da briga
tu enche a barriga com as tuas cachaças
faremos a luta de homem perfeito
na raça e no peito, no peito e na raça. (...)"
Adaga de S

Adaga de S foi uma chamada à briga (de adaga!), de Teixeirinha a Gildo, após este último lançar Não Mexa com Quem Está Quieto. Ali, já nos anos 1970, as “trovas à distância”, que eles fizeram por meio de suas composições, atingiam seu ponto mais agressivo.

A parceria entre os dois começara duas décadas antes, em apresentações conjuntas em circos, CTGs e outros palcos. Mestre da trova, Gildo era chamado por Teixeira de “velho” – nasceu em 1919, na então zona rural de Porto Alegre. Ajudou, e muito, o futuro pop star regionalista a lapidar seu talento como improvisador.

O nível dos duelos entre os dois era tão alto que "arrancava lágrimas dos espectadores", contou Antônio Augusto "Nico" Fagundes, amigo e advogado de ambos, a este repórter quando da pesquisa para uma biografia de Teixeirinha até hoje não publicada.

– Eles chegaram a ficar quatro horas trovando sem parar – relatou, na mesma ocasião, o violonista Arlindo Rodrigues de Moura, o Serraninho, que costumava tocar com o autor de Xote Soledade em suas apresentações na região de Passo Fundo nos anos 1950.

O rompimento se deu após Teixeirinha alcançar projeção nacional, gravando seus primeiros discos na Chantecler (braço da Continental dedicado ao regionalismo), entre 1959 e 1960. Dizia Gildo que o parceiro desrespeitou o trato de ambos segundo o qual aquele que primeiro gravasse em um selo nacional ajudaria o outro a fazer o mesmo. Teixeira retrucava afirmando que o próprio Gildo, artista indisciplinado e brigão inveterado, não aproveitou as chances que teve. Algo que lembra o rompimento entre Roberto Carlos e Tim Maia – sendo Teixeirinha o "rei", e o outro, seu ex-parceiro rebelde.

Foi Gildo quem primeiro enticou com Teixeira, na canção Baile de Respeito, de 1965. Ele havia provocado Pedro Raymundo um ano antes, ao lançar Que Jeito Tem Mariana? – em referência ao sucesso Adeus, Mariana. Mas Teixeirinha, diferentemente de Raymundo, reagiu – com Baile de Mais Respeito.

Cartaz anuncia performance conjunta entre Teixeirinha e Gildo de Freitas em Erechim, nos anos 1950

"Sábado fui dar uma volta lá pras bandas do povoado
por lá descobri um baile, e já fiquei todo assanhado
no salão do Chico Torto, um rebuliço danado
o Gildo Freitas no centro, batendo em gente lá dentro
mas quando na porta eu entro, ficou branco apavorado.
(...)
Gildo saiu comprido, porta afora tropicando
e as moças davam risada do seu palinha abanando
pegou um lenço e um chapéu _ e eu, atrás, saí chutando
tropicou, caiu num valo, agarrei pelo gargalo:
'Vai cuidar do meu cavalo enquanto eu sigo bailando'.
(...)
Quis ressuscitar os mortos e acabei com a choradeira
tomei conta do baile com 30 moças solteiras
gritavam pro Gildo ouvir: 'Mais bonitinho é o Teixeira'
é mais novo e tem mais brilho que o Gildo fora dos trilhos
cuidando do meu tordilho debaixo de uma figueira."
Baile de Mais Respeito

Houve um tempo, no Rio Grande do Sul de 40, 50 anos atrás, em que a rivalidade entre Teixeirinha e Gildo de Freitas era um Gre-Nal musical: o povo ou vestia a camisa de um, ou do outro. Ambos aproveitaram o marketing para alimentar a contradição – Teixeirinha chegou a dizer que tudo começou a partir de uma combinação prévia entre eles, algo que Gildo, porém, nunca confirmou.

O "velho" sempre citou o músico Diogo Mulero, o Palmeira, integrante da dupla Palmeira & Biá e um homem forte da Chantecler, como o funcionário da gravadora que teria sido desencorajado por Teixeirinha a contratá-lo. Mas o próprio Gildo também afirmou, a diversos amigos, que recebera convite para gravar em São Paulo no iniciozinho dos anos 1960, e só não o fizera (seu primeiro álbum sairia depois, em 1964), porque assumir compromissos de divulgação não era uma prioridade em sua carreira.

Palmeira morreu em 1967, provavelmente sem esclarecer a questão. De certa forma, no entanto, o diretor-artístico da Chantecler à época, Biaggio Baccarin, o faz:

– Não foi para tanto (a conversa de Teixeirinha com Palmeira). Ele disse, sim, que Gildo não era fácil. Mas nós já conhecíamos a má fama dele. E não foi por isso que não fomos atrás dele: Gildo era melhor trovando do que cantando, e a Chantecler estava interessada em cantores, não repentistas.

Teixeirinha e Mary Teresinha em visita a Ibirubá para show em 1962

"Me perguntaram se eu sou gaúcho
está na cara, repare o meu jeito
sou do Rio Grande, lá de Passo Fundo
trato todo o mundo com muito respeito
mas se alguém me pisar no pala
meu revólver fala e o bochincho está feito. (...)"
Gaúcho de Passo Fundo

Teixeirinha não nasceu em Passo Fundo, como cantou na letra reproduzida acima. Natural da Mascarada, distrito localizado entre Rolante e Riozinho, ele só foi morar na "capital do Planalto Médio" em 1958. Foi de lá, no entanto, que embarcou em um trem rumo a São Paulo, onde gravou os primeiros discos em 78 rotações por minuto, que lhe garantiram a fama acima do Mampituba.

Muita coisa aconteceu, para Teixeirinha, naquela virada dos anos 1960: logo após o estouro nacional, ele conheceu Mary Teresinha, estabeleceu-se em Porto Alegre e virou apresentador da Rádio Gaúcha (depois mudaria para a Farroupilha e, a seguir, voltaria à Gaúcha). O projeto de seu primeiro filme começou a ser gestado em 1964 – o lançamento foi em 1967. No início de 1970, ele decidiu ir pessoalmente aos estúdios da TV Tupi para uma aparição no programa A Grande Chance. Era o televisivo de auditório de Flávio Cavalcanti, que, de tanto quebrar os discos do músico, chamando Coração de Luto de "apelativa", tornou-se o seu maior detrator.

Os jornais anunciaram com pompa o encontro, e a TV Piratini, que transmitia reprises do programa para o Rio Grande do Sul, montou uma operação para reproduzi-lo, excepcionalmente, ao vivo. O empresário de Teixeira, Clóvis Mezzomo, queria pôr gasolina naquela fogueira: chegou a pedir para Cavalcanti pegar pesado ao falar mal do filho da Ledurina, de modo que o povo se compadecesse ainda mais de seu sofrimento. Mas Teixeirinha nunca deixou de se sentir desconfortável com a exposição do causo de morte de sua mãe.

A própria gravação de Coração de Luto chegou a ser posta em dúvida pelo seu autor. Em algum momento, Teixeira achou que Cinzeiro Amigo seria a canção triste melhor acolhida pelos fãs em meio às já reconhecidas músicas dançantes registradas nos quatro compactos que gravou antes do primeiro LP (cada um com duas músicas, totalizando oito). Coração de Luto acabou sendo uma aposta da Chantecler: ciente do potencial da toada, a gravadora destacou, em texto na contracapa do disco, a história narrada pelo cantor e compositor na letra dedicada a Ledurina.
Quando o público a descobriu, os pedidos de compra da bolacha de 78 r.p.m. foram tantos que a Chantecler não dava conta de atendê-los – caminhões saíam abarrotados das três fábricas da gravadora, apressadamente, sem que se registrasse a quantidade de álbuns carregados. Antes do lançamento do primeiro LP, calcula-se que mais de 1 milhão de exemplares já haviam sido comercializados, o que representava a quebra do recorde da gravadora naquele momento

– Nunca vi nada igual àquele fenômeno – sentencia Baccarin, que no entanto não se arrisca a afirmar quantos discos, afinal, Teixeirinha vendeu.

O músico, alguns de seus nove discos de ouro e o retrato ao lado da parceira Mary Teresinha

Ressalte-se que a tecnologia do long-play era incipiente no Brasil do início dos anos 1960. E que, por isso, o LP ainda não havia alcançado a popularidade dos anos seguintes. Todavia, em 1964, já haviam sido vendidos pelo menos 2 milhões de discos seus – número que aumentaria gradativamente com o passar do tempo até que, a partir de estimativas do próprio Teixeirinha, com base nos relatos da Chantecler, tenha-se chegado à projeção de 25 milhões de álbuns comercializados.

No lançamento de Coração de Luto, o filme, o frisson se repetiu. "Deu até briga de soco entre exibidores do interior gaúcho para levar uma cópia para suas cidades", registrou Zero Hora em setembro de 1967. Só que, de novo, não há documentos que dimensionem, em números, o tamanho do sucesso _ antes de 1970, segundo a Agência Nacional do Cinema (Ancine), não havia controle total sobre a venda de ingressos nas salas de cinema.

O que se sabe com certeza é que, apesar da pequena quantidade de cópias disponíveis (apenas sete, que depois quase triplicariam), cerca de 40 mil pessoas viram o filme em sua primeira semana em Porto Alegre – "um recorde na cidade", conforme ZH, que publicou reportagem indicando que "Coração de Luto bateu todos os êxitos de bilheteria até então registrados na capital gaúcha".

De 1967 até 1969, o longa foi exibido por todos os cantos do Brasil. É impossível que tenha levado menos gente aos cinemas do que o longa seguinte com Teixeirinha, a comédia Motorista sem Limites (1970), que, conforme dados da Ancine, arrastou 1,8 milhão de pessoas às salas brasileiras.

Imagem do filme Carmem, a Cigana

"(voz de Teixeirinha)
Morena dos olhos tristes, sempre te encontro chorando
me digas qual é a mágoa que está te atormentando
sou seu amigo e não posso ver o seu pranto derramando.
(voz de Mary Teresinha)
Sim, meu amigo, é verdade: é tão grande a minha dor
já fui alegre e feliz neste mundo enganador
hoje só me resta mágoa das juras falsas de amor. (...)"
Ela Tornou-se Freira

Depois de Coração de Luto, produzido pela Leopoldis Som e dirigido por Eduardo Llorente, e de Motorista sem Limites, produção da Interfilms de Clóvis Mezzomo e Itacir Rossi, Teixeirina resolveu criar a sua própria produtora para lançar Ela Tornou-se Freira (1971). Com a Teixeirinha Produções Artísticas, pôde assumir por completo as rédeas dos projetos. Acabou contratando Milton Barragan e Pereira Dias para dirigir todos os seus longas-metragens até A Filha de Iemanjá (1981).

Também no cinema havia de um lado o sucesso de público e, do outro, a mão pesada dos críticos – que não perdoavam suas performances como ator, a exaltação de sua figura e a implausibilidade dos roteiros, sobretudo a partir de Teixeirinha a Sete Provas (1973), longa com efeitos especiais "ao estilo da escola americana", como descreveu Mezzomo à imprensa da época.

P.F. Gastal, do Correio do Povo, foi uma das exceções, chegando a fazer um apelo para a crítica "entender que há filmes que atendem a demandas específicas de público" (em outubro de 1976). Antes, Tuio Becker chegou a escrever um artigo intitulado "Quando ser povo envergonha" (sobre Pobre João, também no Correio do Povo, em 1973). Foi aos poucos, sobretudo nos últimos projetos, constata a pesquisadora Miriam Rossini em seu livro Teixeirinha e o Cinema Gaúcho (1996), que os jornais diminuíram o espaço dedicado ao cinema de Teixeirinha.

Inclusive entre os espectadores, por vezes, a recepção dos longas não foi como o seu criador imaginou – há humor involuntário em algumas tramas, o que fazia gente rir em vez de, como preza a cartilha do melodrama, se emocionar. Seus números, a despeito disso, atestam sua larga aceitação. Conforme dados da Ancine, os borderôs dos títulos da Teixeirinha Produções Artísticas registraram entre cerca de 500 mil espectadores (Meu Pobre Coração de Luto) e pouco mais de 1,6 milhão (Ela Tornou-se Freira).

Pobre João, filme de 1975

Cinco dos 12 filmes estrelados por Teixeira, contando Coração de Luto e Motorista sem Limites, passaram da marca de 1 milhão de ingressos vendidos. Todos arrecadaram o suficiente para pagar o longa seguinte – o que caracteriza a produção em escala industrial, um feito histórico para o cinema local. A exceção foi justamente o último, A Filha de Iemanjá, visto por meras 24,5 mil pessoas.

O derradeiro filme de Teixeirinha guarda outra curiosidade: a história de amor e música do astro e de sua parceira Mary Teresinha não termina com ambos juntos. Pouco antes de os créditos subirem, vê-se Mary, vestida de amarelo e branco como uma legítima filha de Iemanjá, atendendo a um chamado dos céus, desaparecendo no mar e deixando Teixeira na praia, triste e incrédulo.

Foi premonitório.

Teixeirinha e Mary Teresinha nos anos 1970

"Quem quiser saber quem sou
olha para o céu azul
e grita junto comigo
viva o Rio Grande do Sul.
O lenço me identifica
qual a minha procedência
da Província de São Pedro
padroeiro da querência.
Ó, meu Rio Grande
de encantos mil
disposto a tudo pelo Brasil
querência amada dos parreirais
da uva vem o vinho
do povo vem o carinho
bondade nunca é demais. (...)"
Querência Amada

Querência Amada foi, talvez, a música de Teixeirinha mais gravada após a morte de seu compositor. Até hoje há quem acredite que a canção não seja sua. O que dá uma ideia do tamanho – e da variedade – do repertório do cantor.

Ele não parava de compor, mesmo quando fazia "shows quase todos os dias, de terça a domingo, por todo o Estado", como descreve sua secretária Helena Martins. Teixeira sempre teve poucos funcionários – a secretária, o empresário e um assistente pessoal. Esse assistente fazia de tudo um pouco, incluindo a segurança de Mary Teresinha. Era o caso de Ângelo Prando, que trabalhou com o músico nas décadas de 1960 e 70.

– Teixeirinha era completamente apaixonado pela Mary – ele descreve. – Mas era algo contraditório. Talvez nem entendesse. Porque tinha ciúmes dela, só que viveu sempre com Zoraida.

Fazia quatro anos que Teixeira era casado com Zoraida Ferreira Lima quando conheceu Mary Teresinha. Jamais se separou da esposa (que morreu em 2014, aos 82 anos). A relação que manteve com Mary era dúbia por natureza. Teve altos e baixos, manifestações de admiração e muitas brigas. De certo modo, está descrita nas canções que ele dedicou à gaiteira: houve declarações de amor afirmativas nos anos 1960 (Mary), a exaltação de sua figura de forma mais madura nos 70 (Menina da Gaita) e, por fim, o desabafo dos 80 ("A tratei como uma santa/ chamava de Cinderela/ vivemos 22 anos/ depois caiu a capela", cantou em Reportagem, gravada em forma de desafio com Nalva Aguiar).

Teixeirinha ao lado de Liane e Alexandre, filhos que teve com Mary, em meio à luta pela guarda de ambos, em 1984

"(...)
No lindo pedaço de verde fronteira
cresceu menina e de lá saiu
não teve tristeza, seu pago querido
foi pra ser sucesso que ela partiu.
Gravando e distante, alegrando as plateias
o som vai na terra de onde ela surgiu
é a mulher gaúcha de fama na gaita
simples, a mais bela que o Brasil já viu.
Foi além da gaita, é atriz, cineasta
de falar já basta, é mesmo rainha
a história gaúcha, o teu nome proclama
o mundo te ama, Mary Teresinha. (...)"
Menina da Gaita

Mary entrou na vida de Teixeirinha como uma fã de 15 anos cooptada para tocar com o ídolo e só saiu aos 37, para se casar com o mentalista Ivan Trilha. Em sua autobiografia A Gaita Nua (1992), classifica a relação de "opressiva". "Tenho 15 anos e estou vivendo como concubina de um homem que não amo, embora não saiba nem o que é amar nem o que é ser amante", ela escreve, logo na primeira frase do livro – lançado sete anos após a morte dele.

Descoberta em Bagé, Mary nasceu em Tupanciretã, em 1946. Idolatrava o avô Argemiro, sujeito sereno que, quando jovem, lutou na Revolução de 1923 ao lado dos maragatos. Era mulher de esquerda – mais um motivo para os desentendimentos com o autor de Querência Amada, que em 1981 assinaria filiação ao PDS, partido do então governador gaúcho Jair Soares e do presidente-general João Figueiredo.

Prestes a deixar o hospital, recuperando-se de enfarte, em 1984, o músico concedeu uma entrevista coletiva

Naquele início de anos 1980, Teixeira passou por vários problemas, que incluíam a derrocada financeira de sua produtora de cinema e a mudança de perfil da Rádio Gaúcha, que passou a investir mais em notícias e esporte, o que determinou a retirada do ar do Teixeirinha Amanhece Cantando (o programa ainda migraria para a Eldorado FM antes de ser extinto). O afastamento de Mary, para juntar-se ao trabalhista Ivan Trilha, foi mais um golpe em um homem que já se revelava em crise.

Foi inevitável, para os fãs, associar os problemas de saúde – o infarto em 1984 e o câncer que o mataria em 1985 – ao término da relação com a gaiteira. Ainda mais que tudo ganhou espaços generosos na imprensa: Zero Hora entrevistou mais de uma vez os ex-parceiros, o Jornal do Almoço, da RBS TV, idem, e até Trilha, que se negava a falar sobre o episódio, justificou sua posição em entrevista a ZH cujo título, em frase atribuída a ele, estampava: "Não participo de atitudes degradantes" (maio de 1984).

Teixeirinha chegou a fazer sessões de radioterapia em São Paulo, mas o tumor nas glândulas linfáticas foi implacável. Mary não compareceu ao velório, nem ao funeral – atitude prudente diante da fúria de alguns fãs do astro do gauchismo. Anos depois, chegou a reclamar na Justiça os direitos autorais das canções que gravou com Teixeirinha – sem sucesso. Converteu-se à Igreja do Evangelho Quadrangular e lançou alguns discos de temática gospel. Completará 70 anos em março próximo. Conversou com este repórter durante e depois da pesquisa para a até hoje não publicada biografia de Teixeirinha. Deixou claro, em todas as ocasiões, que não gosta de falar sobre o ex-parceiro. Nos poucos momentos em que admitiu relembrar a parceria, repetiu uma frase usada em diversas ocasiões nos últimos 30 anos:

– Eu não matei Teixeirinha.

Estátua no túmulo de Teixeirinha, no Cemitério da Santa Casa, em Porto Alegre