Porto Alegre

como destino

Seja nas pequenas ou médias cidades do Interior, a queda nas condições de vida e na oferta de emprego causou, desde o início de 2015, a intensificação do movimento de partida de caribenhos e africanos em direção aos grandes centros urbanos. Se as fontes secaram na Serra, no Planalto e nos vales do Taquari e do Rio Pardo, centenas de imigrantes que decidiram permanecer no país partiram para Porto Alegre e São Paulo. Não por acaso passou a ser comum ver haitianos e senegaleses na capital gaúcha em maior número - hoje, seriam cerca de mil.

– Esses imigrantes vieram para encontrar trabalho, especialmente nas regiões de Caxias do Sul e Passo Fundo. Pelo momento do país, isso tem se revertido. Essa virada ocorreu com mais força no início deste ano. Como estão perdendo o emprego ou não estão mais encontrando oportunidades nesses locais, a tendência é de que procurem os grandes centros. Porto Alegre e Região Metropolitana passam a ser os destinos escolhidos diante dessa nova situação – explica o padre Lauro Bocchi, coordenador do Cibai Migrações.

Em 2011, quando eclodiu a chegada de haitianos e senegaleses, as indústrias alimentícias os buscavam no Acre, por onde entravam no Brasil. Como precisavam da mão de obra, os frigoríficos iam ao encontro dos imigrantes, faziam seleções e os contratavam no ato, providenciando passagens. A indústria alimentícia está concentrada no Interior: gigantes operam em Marau, Lajeado, Encantado, Passo Fundo, Erechim, Garibaldi, Tapejara. Mas também as metalúrgicas, o setor moveleiro e a construção civil, carentes de trabalhadores, passaram a empregar em larga escala os imigrantes nas localidades interioranas.

A conjuntura os levou a habitar essas cidades em considerável número. As comunidades pequenas e médias também eram preferidas pelos estrangeiros pelo custo de vida menor. Pesquisadores ainda indicam outro fenômeno: no Interior, haitianos e senegaleses não são "invisíveis". Se um grupo de negros desce em um município formado por descendentes europeus, certamente será notado. Por mais que alguns torçam o nariz, sempre haverá alguém para acolhê-los. Nos grandes centros, é maior a possibilidade de passarem despercebidos no meio da multidão, esmagados pela indiferença e pela velocidade do cotidiano.

Essa era a base que mantinha grupos massivos de imigrantes longe de Porto Alegre. Mas, com a crise, o ciclo mudou. No Interior, a construção civil e as indústrias moveleira e metalúrgica demitiram. O setor alimentício, seja de bovinos, suínos ou aves, não chegou a relevantes demissões, mas cessou as contratações. O mercado parou. E a Capital virou destino.

– Houve um esgotamento no Interior. Também ocorreu uma mudança no perfil desse trabalhador. Em Porto Alegre, estão no setor de serviços, nos postos de gasolina, na limpeza em shoppings, são garçons em restaurantes e auxiliares em hotéis. É uma mudança em relação ao que faziam no Interior, onde se concentravam na indústria – explica Bocchi.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A construção civil é a única semelhança da atividade profissional do imigrante no Interior e na Capital. Em qualquer uma das localidades, há caribenhos e africanos trabalhando em obras. É o caso do haitiano Maxonuy Vertü, que protagonizou uma peregrinação de mais de quatro meses em nome de um emprego. Primeiro, levou 22 dias entre a saída do Haiti e a chegada a Rio Branco, intercalando avião, ônibus e caminhadas. Na capital do Acre, agonizou por mais um mês no desumano abrigo de imigrantes em que convivem com o mau cheiro, banheiros inutilizáveis, umidade, colchões rasgados, superlotação, água escassa e doenças.

Como não conseguiu embarcar em nenhum ônibus bancado pelo governo federal, Maxonuy teve de esperar a família enviar dinheiro para comprar uma passagem aérea. Juntou todos os caraminguás e, depois de contatos com amigos, foi parar em Estrela. Ficou por 45 dias na cidade, sem sequer ser chamado para uma entrevista de emprego. Teve de deixar o Vale do Taquari porque estava sem dinheiro e os compatriotas começavam a exigir que ajudasse no racha do aluguel.

Migrou mais uma vez. Em Porto Alegre, se instalou sem custos no abrigo do Centro Vida, na zona norte, aberto por meio de uma parceria entre o Estado e a prefeitura. Lá consegue fazer as três refeições do dia e conta com lugar para dormir, em um alojamento simples, embora mais digno do que a realidade vivenciada por ele e outros milhares de imigrantes que chegam ao Brasil pelo Acre.

Na segunda quinzena de setembro, após um mês e meio vendo o tempo passar no Centro Vida, remoído pela ansiedade e saudade da família, Maxonuy finalmente alcançou o trabalho que o fez rasgar a América do Sul. A partir de contatos da prefeitura da Capital, ele e outros 23 imigrantes, entre senegaleses e haitianos, foram contratados para atuar como auxiliares nas obras da nova ponte do Guaíba.

Trocou a angústia pela labuta no canteiro industrial 1, onde ajuda a concretar estacas pré-moldadas de 32 toneladas que estão sendo cravadas para dar sustentação à futura ligação da Capital com o sul do Estado. Revira massa, carrega lonas, dá marteladas

– Foram quatro meses sem serviço. Agora tenho meu primeiro emprego. Estou contente e acho que estão contentes comigo – comemora o haitiano.

Maxonuy Vertu é um dos quase 50 imigrantes alojados no Centro Vida, em Porto Alegre

Em setembro, Maxonuy Vertu começou a trabalhar na obra da ponte do Guaíba, após quatro meses de espera por emprego

Se a história de Maxonuy for comparada a de outros compatriotas, é possível concluir que até contou com certa dose de sorte. Dieuquilce Fils está há 13 meses no Brasil, passou por Belo Horizonte e, desde o último semestre, é habitante da Ocupação Progresso, na zona norte de Porto Alegre. Nunca conseguiu emprego. Em uma manhã chuvosa de setembro, pulava poças d'água, atolava o pé no barro das precaríssimas ruas, segurava inutilmente para o alto um guarda-chuva em frangalhos. Admitiu que, para comer, depende da solidariedade dos vizinhos imigrantes. Diariamente, zanza pelas casas para filar algo. Não fosse a caridade dos companheiros, passaria fome. Dieuquilce jamais contou à família que ficou no Haiti sobre a sua condição miserável no Brasil.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

– A vida migratória gera muitas expectativas e frustrações. Eles não falam para quem ficou para trás que estão vivendo desse jeito. Ninguém fala – diz Alix Georges, haitiano que vive em Porto Alegre desde 2006 e montou uma ONG de apoio aos imigrantes.

Entre os motivos para manter o descalabro brasileiro em segredo, estão as intenções de não preocupar os parentes e de não se sentirem derrotados.

– Eles chegam em busca de vida digna, mas muitos já não conseguem mais se autossustentar. Acabam entrando em crise existencial. Não conseguem se manter, não enviam dinheiro às famílias, são discriminados e vítimas de situações desumanas. Se desesperam e perguntam: "O que estou fazendo aqui?" – analisa o padre Lauro Bocchi, do Cibai Migrações.

Na Ocupação Progresso, um jovem que está trabalhando em posto de gasolina tecia comentários, mas se negava a revelar seu nome e a ser fotografado. O motivo era o medo de que os consanguíneos tomassem conhecimento da sua realidade.

– Se eu mostro uma foto minha aqui, vão se apavorar. "O que você está fazendo aí, volte agora" – disse o haitiano incógnito, de tronco largo e forte, entoando em voz grave e desesperada, como seria a reação da sua mãe ao vê-lo ali, no meio do barro e de casebres de madeira que parecem estar para desabar a cada lufada.

A quantidade de imigrantes que moram na área é motivo de divergência. Ilisiane Vida, uma brasileira que se apresenta como presidente da Associação dos Moradores da Ocupação Progresso, diz que são 85 caribenhos. Já Getony Gustinvil, líder entre os haitianos, afirma que são em torno de 50. O número de desempregados ambos têm na ponta da língua: cerca de 20.

Na casa de Getony, sob um telhadinho com goteiras, jaz um sofá rasgado e com um braço quebrado. Parado ali, ele explica que não há saneamento básico, água ou energia elétrica. Tudo é arranjado na base do gato. Ele está há dois anos no Brasil, trabalha na limpeza de salas de cinema em Porto Alegre e, um mês atrás, trouxe a mulher para morar na ocupação. Ela se apavorou.

– Quer ir embora. Tenho duas casas no Haiti que são muito melhores do que essa – afirmou, apontando para o seu casebre, um amontoado de madeira cor-de-rosa.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Como moram em bairros marginalizados, são vítimas da violência urbana. A casa dele já foi arrombada e levaram o que havia dentro, incluindo o passaporte. Ele, apesar de tudo, quer ficar no Brasil e busca o apoio de advogados para formalizar a Associação dos Haitianos da Ocupação Progresso.

Getony já teve boa vida no seu país. Era encarregado de cuidar de um mercado público. Foi membro do Lavalas, sigla política do ex-presidente Jean-Bertrand Aristide, derrubado duas vezes. Depois, passou ao Fusion, de oposição a Aristide. Em um contexto de perseguição e conflito político - o Haiti tem mais de 120 partidos -, entendeu que o melhor era deixar o país.

Perto da Progresso, estima-se que 300 haitianos vivem entre os bairros Santa Rosa e Sarandi, onde encontram itens básicos de urbanização, como calçamento, iluminação, saneamento, água e energia elétrica, mas ainda se mantêm vulneráveis quanto à violência urbana e à qualidade das habitações.

A presença numerosa na região ocasionou a abertura de negócios especializados em atender a demanda dos imigrantes. No Santa Rosa, o haitiano Stenio Chery abriu a sua lan house há sete meses. Os compatriotas o visitam e ficam por horas no Facebook, comunicam-se com os familiares. Mas a vida empreendedora de Stenio não vai bem. Seu estabelecimento foi arrombado duas vezes. Levaram três dos seis computadores.

– Está cada vez pior, tudo está mais caro. Estou procurando um jeito de ir embora – revelou Stenio.

Wilfrid Toussaint, soldador de ofício, trabalha como gari em Canoas, na Região Metropolitana. Corre, recolhe o lixo e o atira dentro do caminhão. Haitiano, ele mora no Santa Rosa, em Porto Alegre, nos fundos de uma pet shop. São oito pessoas dividindo três modestas peças, uma delas tomada somente por camas. O aluguel é de R$ 500. O pé direito é baixo, há mofo, sujeira, vidros quebrados. Um lugar lúgubre e insalubre. Wilfrid não reclama.

– Acho que o Brasil é bom. Melhor do que o Haiti – assevera.

Liderança entre os haitianos da Ocupação Progresso, Getony Gustinvil trabalha na limpeza de salas de cinemas em Porto Alegre

No bairro Floresta, nos arrabaldes da Avenida Farrapos, é fácil encontrar haitianos e senegaleses nas ruas Leopoldo Froes, Paraíba e Câncio Gomes. Moram em pensões, prédios decrépitos e até antigos motéis. Nas calçadas, sentam e conversam em pequenos grupos. É uma região de prostituição, cercada por prédios abandonados, quebrados, sujos, pichados, vandalizados.

Embora estejam habitando áreas conflagradas para pagar aluguel mais baixo, não há registro de envolvimento de imigrantes com atividades criminosas. O comportamento é pacífico. Os senegaleses, muçulmanos, sequer podem consumir bebidas alcoólicas.

A prefeitura de Porto Alegre avançou na acolhida aos estrangeiros, mas as sub-

habitações, junto ao desemprego, seguem como barreiras difíceis de serem vencidas.

– Os imigrantes que chegam alugam casas ou peças em comunidades de baixa renda. Nesse ponto, ainda temos de avançar. Estamos auxiliando-os a buscar lugares para morar. O déficit habitacional para os porto-alegrenses é de 40 mil unidades. É um setor de muitas dificuldades – avalia Luciano Marcantônio, secretário municipal de Direitos Humanos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

No bairro Floresta, em Porto Alegre, imigrantes alugam peças em áreas degradadas e de prostituição

A zona leste da Capital também é núcleo de concentração de imigrantes. Lideranças do Conselho Popular da Lomba do Pinheiro calculam que duas centenas de caribenhos vivem entre as paradas 9 e 19 do bairro, parte deles em áreas de disputa por pontos de tráfico de drogas. Como ocorre na maioria dos recantos, a Igreja assumiu a linha de frente na assistência social. Muitos procuram socorro na Paróquia Santa Clara, pedem ajuda para encontrar emprego e matar a fome. Para deixar uma mensagem de boas-vindas, o frei franciscano João Osmar D'Ávila está organizando, junto com o Conselho Popular, um almoço dominical de confraternização com os haitianos da região. Eles foram consultados para a elaboração do cardápio e estão escolhendo músicas típicas do seu país para animar a festa.

– O nosso desafio aqui na Lomba é garantir boa acolhida. Ir além da entrega da sacola de alimento. Oferecer, pelo menos, aulas de português. Estamos planejando isso – destacou o religioso.

Na humilde hospedaria de Sueli de Souza Prates, no Acesso 8 da comunidade Vila Nova São Carlos, 13 das 15 casas estão alugadas para cerca de 30 haitianos. É o caso de Karina Compadre, que perdeu o emprego na limpeza de um posto de saúde porque enfrentava dificuldades para encontrar alguém que pudesse cuidar da filha Amelia, seis anos. A empresa que a contratou pretendia transferi-la para outros locais de operação, fora da Lomba, e Karina alegou que não sabia como chegar lá. Acabou demitida.

Karina Compadre (com a filha Amelia) perdeu o emprego e não conseguiu recolocação no mercado