Era uma vez um lugar chamado Buraco Fundo. Lá havia uma princesa, um recanto, uma escola de sonhos e muitas lendas. A história nunca contada de uma coisa que quase nada se sabe: um buraco tão grande que por pouco não engole o ginásio a sua beira. Era tudo o que sabíamos até a chegada à localidade, distante cerca de 20 quilômetros do centro de Vale Verde, município com 3,2 mil habitantes localizado a 60 quilômetros de São Jerônimo e a pouco mais de meia hora de Venâncio Aires. Um lugar que é um buraco ou um buraco que é um lugar?
– Que lugar é esse? – espantam-se as pessoas.
Tem esse nome por causa de um acidente geológico, uma voçoroca (ou boçoroca), que ninguém sabe dizer quando surgiu. Contam que tem mais de 500 anos, que apareceu depois de uma grande enchente, que era um formigueiro, ou simplesmente uma obra de Deus. A bem da verdade, o buraco sempre esteve ali. Não há geração que não o conheça. Em vez de engolir, ele fez crescer aquele lugar de terra vermelha. Dele se fez vida, surgiram muitas histórias, lembranças de infância, estigmas.
Aproximadamente 320 pessoas moram na localidade, que tem um quilombo, a princesa do município, um poema premiado, a escola que é referência da região e uma das melhores hospedagens rurais do Estado. Os sedimentos que resistem no vale do minicânion são os testemunhos do passado, e as pessoas que ali vivem são resquícios da relação que une homem e natureza, um olhando para o outro.
PAISAGENS DO BURACO FUNDO
ONDE COMEÇA O FUTURO
Localizada a pouco menos de 200 metros da grande erosão, a Escola Municipal de Ensino Fundamental Adélia Figueiredo de Menezes permanece intocável. Desde sua origem, em 1923, quando um antigo fazendeiro, preocupado com a educação dos seus filhos e dos vizinhos, mandou buscar uma professora na cidade – a Adélia – para lecionar em sua residência, o colégio vem crescendo. Hoje, é a principal escola de Educação Infantil e Fundamental do interior de Vale Verde. São sete salas de aula, biblioteca, sala de vídeo e informática, refeitório e até um grande ginásio que, visto de longe, fica pequenino diante do buraco.
Num lugar onde o povo era arisco e isolado, a identidade foi sendo construída e consolidada junto com a escola. Em 2016, a professora Adriana Oliveira da Silva, 46 anos, conduziu os alunos em um projeto e ficou encantada com o resultado. A cratera no chão parece ter aberto caminho também na mente de sua gente. Foi assim que o estudante do 5º ano Vinício Borges Flores, 12 anos, sentiu. Fez da erosão lindas palavras, colocadas em um poema durante as Olimpíadas da Língua Portuguesa, que mereceu prêmio e que foi declamado pelo próprio Vinício na Câmara Municipal:
“O lugar onde moro tem um buraco muito fundo
A extensão é tão grande até parece o fim do mundo
É um lugar misterioso por muitos estudado
Importante ponto turístico e muito visitado
Meu pedaço de chão, de povo trabalhador
Com a Comunidade Quilombola, do pequeno e grande agricultor
Nesta terra de encantos também tem educação
Numa escola querida que amo de coração
Minha Escola Adélia, onde o futuro começa
Tem conhecimento e arte. Aqui a gente se expressa.”
ESCOLA MUNICIPAL DE ENSINO FUNDAMENTAL ADÉLIA FIGUEIREDO DE MENEZES
– A localidade tem identidade própria. Não teria outro nome para dar pra esse lugar. O buraco é tão natural e faz parte do ambiente deles – avalia Adriana, que há 25 anos alfabetiza na região.
Rovena Dettenborn, hoje secretária municipal de Educação, Cultura, Desporto e Turismo, lembra que nem sempre foi assim. Certa vez, uma professora recém chegada à Escola Estadual Ensino Médio Curupaiti, na área urbana, queria saber o nome de cada aluno e o lugar onde morava. Respondiam apenas Dourados ou Monte Alegre. Um dia, ela questionou:
– Mas como vocês não falam de onde são? Vocês são do Buraco Fundo, têm que falar.
Rovena, que na época era diretora da escola, ficou surpresa:
– Até ali, não tínhamos nos dado conta. Então começamos a trabalhar essa questão. Eles têm que ter orgulho e gostar do lugar.O buraco acabou se tornando mais do que um ponto de referência. Desde antes de Vale Verde ser Vale Verde, Buraco Fundo já era Buraco Fundo. Aos poucos, o município foi investindo na escola.
– Alguma energia, alguma coisa tem. Pode ver que as escolas no entorno foram fechadas e permaneceu aquela. Não tinha nada em volta. Hoje está bem mais povoado. Até a linguagem deles era diferente da nossa – diz Rovena, numa roda de conversa depois do almoço no Sítio do Buraco Fundo.
SÍTIO DO BURACO FUNDO
A URBANA VIROU RURAL
Estressada com “o mundo lá fora”, a turismóloga Paula Kist, 37 anos, decidiu tirar um ano sabático para descansar no sítio dos avós. Fez mais do que isso. Em poucos meses, já havia transformado o lugar num recanto de descanso e gastronomia.
Trocou a vida e o trabalho de gestão em um hotel em Florianópolis pela tranquilidade na zona rural.
– Eu fui pro buraco e hoje não quero sair do buraco. E mais, hoje o buraco ajuda a tirar as pessoas do buraco e faz elas enxergarem que estão no buraco do mundo lá fora, o buraco da loucura da vida deles – reflete.
Paula cuida do sítio com a ajuda da avó, Cecília Kist, 84 anos, e recebe os visitantes – de todo Brasil e até do Exterior – como se estivessem em casa.
No começo, o nome do empreendimento parecia engraçado e negativo. Paula não se incomodou, afinal, era naquele lugar que sempre se reunia com os amigos e a família, principalmente nos últimos 12 anos. Agora, o lugar figura entre as cinco melhores hospedagens de turismo rural familiar do Estado, conforme o site TripAdvisor. A urbana Paula é hoje a a mulher do Buraco Fundo.
– Ela pega o carrinho, ela vai pro campo, ela busca e esfarela esterco, bota nas plantas, faz de tudo – comenta a vó Cecília.
– Uma típica buraco-fundense – brinca a neta.
Na parede do quiosque próximo da mesa de jantar e do fogão, onde recebe os hóspedes para as refeições, está um grande painel de relógios com os fusos horários das principais capitais do mundo. Uma das poucas lembranças que a turismóloga trouxe do hotel em que trabalhava.
– Mas falta Buraco Fundo – aponta.
Só que no sítio não há preocupação com o tempo. Quem chega é avisado pelo cartaz na entrada: “Seja bem-vindo, desligue o celular e respire a natureza!”.
O que tem para fazer no sítio? Paula é objetiva:
– Nada! A proposta é descansar, dar uma caminhada, praticar o nadismo.
No finais de tarde, toma chimarrão sentada à beira de um açude, junto aos bangalôs, e observa a revoada dos pássaros durante o pôr do sol. Poderia até ser o reflexo das panelas de ouro, que dizem estar escondidas embaixo das tantas Figueiras que existem na região. É comum cavarem grandes buracos à procura da relíquia. Quem sabe até a voçoroca que dá nome à localidade tenha nascido assim. A única coisa que sabemos é que lá, bem na beira, nasceu um homem.
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a princesa e o quilombo
O FILHO DO BURACO
Mal a conversa começa, com o repórter ainda do outro lado da cerca, Sérgio Rosa, 55 anos, metalúrgico aposentado, revela:
– Nasci na beira do buraco.
O homem, que se diz “xucro” e desconfiado, aos poucos vai largando a enxada. Logo já estava nos levando para o buraco. Queria mostrar onde havia nascido, “naquele matinho ali”, embaixo de uma figueira, na antiga casa da família, a poucos metros da erosão.
Cresceu brincando dentro da voçoroca e vendo a mãe e a irmã lavarem roupa nos olhos d’água que ali surgiam. Com uma pá, descia o barranco arquitetando os degraus.
– Tinha os lugares, as escadinhas pra descer. Tem uma água bem boa ali. Tem uns quantos olho d’água – relembra.
Foi embora com 18 anos e há seis, quando se aposentou, voltou para onde viveu a infância:
– Sempre gostei daqui. Só fui embora porque era melhor o serviço. Senão, tinha ficado sempre aqui.
Vinha gente de todo canto para ver o tal do buraco. Uns passavam pela estrada e ficavam curiosos. Sergio gostava de ir lá mostrar.
Tomar banho de sanga, correr entre os barrancos e pregar peça nos desconhecidos eram suas brincadeiras preferidas. O pessoal ficava com medo:
– Aí eu vinha e corria e descia ligeiro e eles se assustavam.
Saltava no ar como se fosse afundar e nunca mais aparecer. Até que de repente ressurgia flutuando a gargalhando. Sabia onde ficavam as escadinhas.
Atualmente, mora na ponta do buraco. Pode ser o fim ou o começo. Para ele não importa.
Vive com a esposa e os filhos, tem sua terra e sua casa. Dali consegue avistar o cemitério local, onde estão enterrados o pai, a irmã, os avós, os tios e os primos. É onde nasceu e decidiu terminar a vida. As lembranças de Sérgio parecem ecoar as vozes do lugar, querendo ser ouvidas para não cair no esquecimento.
Antes da despedida, ele aponta em direção aos fundos do colégio, indicando os moradores do quilombo, do outro lado do buraco:
– Lá estão eles colhendo fumo.
Acompanhando a carreta de boi carregada, sem vaidade e cheia de sonhos, está uma linda moça de pele negra. Com as mesmas mãos que pela manhã colhia fumo sob o sol escaldante, a jovem Tais Carvalho, 18 anos, segura com vontade a faixa de soberana de Vale Verde, agora para o retrato da reportagem. No fim de tarde, pouco antes de ir para o colégio, a estudante, já de banho tomado e sem a goma do fumo nas mãos, conta como foi ser escolhida para representar um município de colonização luso germânica:
– Ser princesa é um sonho que eu tinha desde criança. Todos me ajudaram e eu consegui. Estou recebendo um carinho que nunca recebi.
Em 21 anos, ela é a primeira negraa vencer o concurso. Moradora do Quilombo Santos Rocha, em Buraco Fundo, às margens do minicânion, de dia colhe fumo com a família e de noite cursa o último ano do Ensino Médio na cidade.
Quando criança, Taís brincava no buraco, descia pelos caminhos, fazia piquenique e escalava os barrancos. Tímida, de voz mansa, a princesa não desdenha do buraco. Projeta fazer faculdade de enfermagem em Santa Cruz do Sul, trabalhar em Vale Verde e dar uma vida melhor para sua mãe:
– A gente precisa sonhar. Independentemente de tudo, é preciso acreditar na gente. Tem de levar o nome do Buraco Fundo e da comunidade.
Junto com o primo agricultor, João Carlos dos Santos Rocha, 39 anos, ela é uma das lideranças da associação do quilombo que há quatro anos luta pelo registro oficial da unidade. Articulado e entendido das coisas, João Carlos lembra que corria e pulava com os primos pelos paredões da erosão. Hoje corre para completar os estudos e saber escrever mais do que o nome.
– Eu não consigo dizer que moro em Vale Verde. Eu digo Buraco Fundo. Foi assim que eu aprendi. É a lição da gente – define.
Em 2018, com o quilombo finalmente registrado, tem expectativa de poder realizar planos que façam a comunidade crescer e melhorar as condições de moradia e produção agrícola.
– Construir horta, galinheiro, chiqueiro de porco...
Do tio, um dos mais antigos na região, Taís e João Carlos sempre ouviram falar da existência do buraco do outro lado da estrada. Gumercindo Santos Rocha, 80 anos, conta que bem antes dele nascer já tinha a tal voçoroca que tanto causa curiosidade.
– O buraco se formou da natureza do mundo. Deus nosso Senhor que forma com simplicidade.
– Quando dá um trovão, nem treme a terra – observa João Carlos.
Nada que vem de cima parece assustá-los.
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SAUDADE DOS RASANTES
No fundo da voçoroca, a água limpa que corre da sanga fez a vegetação tomar vida e subir nos paredões vermelhos. Como era antes, de ser visto todo de cima, não dá mais. Até os aviões pararam de dar rasante.
Quando piá, o agricultor Otomar da Silva Araújo, 61 anos, sentava-se à beira da estrada para cuidar o movimento das carretas de boi e observar as aeronaves voando baixo no céu. Surpreso, pensava que queriam ver o buraco.
– Naquela época, aparecia bem. Imaginava que (voando) era alguém tirando foto – relembra, escorado no balcão de madeira do armazém que herdou do pai, na divisa entre Dourados e Buraco Fundo.
Assim como Tais, Sérgio e João Carlos, Otomar também frequentou a mesma escola e adorava fazer incursões na voçoroca:
– Eu moro e não moro. Em faço divisa com ele, eu vivo dele. Um paraíso a morada aqui.
Há anos o buraco deixou de crescer, mas mesmo assim continua grande. Ao todo, são cerca de 200 metros de comprimento, cem metros de largura e 30 metros de profundidade na área mais elevada, oscilando de tamanho no decorrer de sua extensão, o que equivale a quase dois campos de futebol.
Foi realmente obra da natureza, muito comum em terrenos arenosos. Mas a voçoroca não foi causada por um formigueiro nem por uma escavação pra procurar panelas de ouro.
– É resultado de um processo de erosão linear que promove um sulco na superfície da terra, decorrente do escoamento superficial.
Ou seja, proveniente da chuva. À medida que esse canal vai se aprofundando e desgastando a superfície, ele pode atingir outros níveis de escoamento de água em subsuperfície.
A água então escoa por dutos no interior da terra – explica a doutora em geografia física e especialista em geomorfologia Dirce Suertegaray. – É como se fosse um imenso anfiteatro que, conforme vai descendo, diminui a largura e a profundidade e termina numa sanga de canal pequeno.
Lá dentro, onde antes corriam as gentes do lugar, pra gritar, brincar ou lavar roupa, correm as vidas da natureza. São plantas, árvores, cigarras, abelhas, formigas, pássaros e insetos. A vegetação que tomou conta dos paredões não é sujeira, como acha a maioria dos moradores. Pelo contrário, foi o que fez o buraco estabilizar.
– Se estivesse ativa, com qualquer chuva torrencial as paredes laterais poderiam desmoronar – alerta a especialista.
Lá em cima, durante o recreio na escola, as crianças espiam o buraco, empoleiradas nos brinquedos e na tela que cerca o prédio.
Enxergam apenas a plantação de fumo, mato e árvores. É um bom sinal. Homem e natureza estão em segurança, um olhando para o outro, como foi no começo dessa história.
TEXTO
Carlos Macedo
carlos.macedo@zerohora.com.br
IMAGENS
Carlos Macedo
carlos.macedo@zerohora.com.br
EDIÇÃO
Daniel Feix
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DESIGN
Amanda Souza
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